D. Estêvão Bettencourt, O. S. B.
Um dos traços do pensamento contemporâneo é o relativismo: não haveria uma verdade válida em todos os tempos nem um Ética correspondente, mas valeria o princípio “cada um na sua (verdade e Ética)”. Tal fenômeno diminui a pessoa humana, já que a verdade é a luz para a construção de uma personalidade e para a orientação da vida humana em demanda do seu Fim Supremo. Daí a conveniência de procurarmos os antecedentes de tal atitude, à qual proporemos um breve comentário.
1. UM POUCO DE HISTÓRIA
Começaremos o nosso percurso histórico com Martinho Lutero (1483-1546), para não recuarmos até Sigério de Brabarte (+1284), que no século XIII propunha a teoria da dupla verdade (uma no campo da fé, outra no campo da razão).
1.1 Lutero
Martinho Lutero enfatizou grandemente a deteriorização da natureza humana em virtude do pecado dos primeiros pais. Consequentemente julgava ter sido afetado o acume do intelecto humano. Era contrário à Filosofia, especialmente à Metafísica, e rejeitava o estudo universitário como fonte de heresias para a religião. Essa posição de Lutero antiintelectual e antimetafísica encontrou seguidores nas correntes filosóficas posteriores; com efeito, verifica-se que a Filosofia moderna se aplica fortemente à crítica do conhecimento, professando restrições à nossa capacidade de conhecer a verdade. Sejam citadas algumas escolas que cultivam a crítica do conhecimento:
1.2 Sensismo
Ensina que só conhecemos as impressões captadas pelos sentidos; os conceitos universais não são senão conglomerados confusos de percepções sensíveis. Condillac (1715-1789), por exemplo, tentou provar que todo conhecimento se reduz à sensação e às transformações da sensação.
O sensismo ou empirismo começou com Francis Bacon (+1626), que teve seus seguidores, principalmente na Inglaterra: Locke (+1704), Berkeley (+1753) e David Hume (+1776).
David Hume leva o sistema ao extremo. Nega realidade a toda substância, inclusive à substância espiritual (eu). Nega o princípio da causalidade, e cai num cepticismo teórico (o cepticismo prático é impossível, porque o homem tem que lidar com a realidade que o cerca, distinguindo, por exemplo, pão e pedra).
1.3 Idealismo
Afirma que não conhecemos senão os nossos próprios pensamentos (=idéias), donde o nome de idealismo. Esta sentença acarreta grave conseqüência: se não conhecemos senão nossas idéias, não temos certeza de que existe um universo fora do pensamento e, caso exista, não podemos saber como ele é realmente.
Existe o idealismo propriamente dito, professado por Fichte, Schelling, Hegel no século XIX, autores para os quais o universo se reduz a um sistema de idéias, que não tem realidade a não ser no espírito. Nada existe fora do espírito. Esta tese se fundamenta no seguinte arrazoado: o conhecimento é uma função imanente ao espírito. Este não pode sair de si para vaguear pelas coisas que o cercam. Por conseguinte todo raciocínio é ilusório; é petição de princípios ou círculo vicioso.
Immanuel Kant (+1804) deu forma especial ao idealismo. Ensina que a realidade pura e simples é incognoscível. Só conhecemos fenômenos (=o que nos parece), temos em nossa mente certas categorias a priori nas quais encaixamos os fenômenos, que assim identificamos. A vida moral, porém, precisa de esteios, que são os postulados da razão prática: livre arbítrio (incapacidade de cumprir a lei moral), imortalidade da alma (conseqüentemente sanção póstuma) e existência de Deus.
Para Friedrich Hegel (+1831) todas as realidades vêm a ser idéia ou o Espírito Absoluto, que se desenvolve na História seguindo a trilogia de tese, antítese e síntese, afirmação, negação e superação do dualismo. O Estado surge acima dos indivíduos por necessidade da vida espiritual coletiva e realiza os mais elevados objetivos da humanidade.
1.4 Existencialismo
O existencialismo é mais uma orientação filosófica do que uma escola. Entre as suas notas características está o reconhecimento de que a existência humana é tragicamente angustiante. A consciência disto suscita duas atitudes existencialistas:
- a atéia, que julga ser a vida um absurdo; é o que Jean-Paul Sartre chama a Náusea; Heidegger, o viver para a morte; Camus, o Absurdo;
- a atitude cristã, que ultrapassa a angústia da vida mediante a fé, Sören Kierkegaard (+1855); ou a esperança, Gabriel Marcel.
Essa mentalidade existencialista em suas linhas gerais é avessa aos valores perenes e metafísicos; persiste em nossos dias aguçada pro dois fatores importantes:
1.5 Historicismo
A tomada de consciência da dimensão histórica em que está envolvido o ser humano leva a crer que tudo é passageiro, também a verdade e o bem moral; nada permanece através dos tempos. O darwinismo teve grande peso na concepção de tal princípio.
1.6 Hedonismo
O pensamento moderno é muito marcado pela procura do prazer e pela fuga do sacrifício – o que leva a trair e desdenhar os grandes valores em favor de um bem-estar sensível e fugaz, que muitas vezes avilta a pessoa humana. O hedonismo concorre para se negarem as verdades “incômodas”, com a alegação de que já fizeram época e se acham ultrapassadas. Assim cria-se a Ética individual de cada sujeito ou grupo. Sigmundo Freud (+1939) é, em parte, pai de tal atitude, propondo a imagem da panela de pressão para representar o ser humano: o ego é pressionado pelos impulsos instintivos (Eros e Thánatos) que querem expandir-se, mas o mesmo ego é censurado pelo super-ego, que proíbe a expressão dos impulsos cegos e semiconscientes. Ora, diz a psicanálise freudiana, se alguém se contém, atendendo à censura da sociedade ou do super-ego, corre o risco de neurose; daí a recomendação de muitos profissionais, que sugerem como solução de problemas psicológicos a concessão livre ao prazer dos sentidos. Tal mentalidade impera fortemente em educandários e em certas famílias.
Após este breve percurso histórico, pergunta-se:
2. QUE DIZER?
Proporemos duas observações:
2.1 Realismo Natural
Verifica-se, após reflexão sincera, que toda crítica da verdade ou o relativismo da verdade supõe o absoluto de uma verdade ao menos: a verdade absoluta de que a verdade é relativa. Por conseguinte, é mais lógico professar nem o sensismo, nem o idealismo, mas o realismo… o realismo natural ou espontâneo, que tem por base a evidência do objeto que salta ao olhos da mente e é reconhecida pelo comum dos homens. O intelecto humano foi criado para a verdade e dela é sôfrego. Seria frustrado nessa aspiração espontânea? Seria o único frustrado ou sem resposta num mundo em que há uma série de binômios em forma de demanda e resposta? Assim:
Olho – Luz
Ouvido – Som
Pulmão – Ar
Estômago – Alimento
Bússola – Norte
Somente o intelecto humano não teria a sua resposta natural? Se não a tivesse, poder-se-ia dizer que a inteligência humana traz a marca do absurdo.
Não há duvida, o ser humano comete erros de raciocínio. Acontece, porém, que ele é capaz de os detectar e, com o auxílio de seus semelhantes, corrigi-los, ao menos no tocante à orientação básica da vida humana, que é sequiosa do Infinito ou Absoluto. Muito sabiamente escreve Blaise Pascal (+1667): “O homem foi feito para ultrapassar indefinidamente a si mesmo”. Léon Bloy formula-o nestes termos: “Somos peregrinos do Absoluto”. Não nos seria dado reconhecer o caminho que leva ao Absoluto, iluminados pela Verdade?
Em última análise, toca-se aqui na questão: “Homem, quem és tu?” Todos respondemos em geral: “Sou uma grande demanda, inquieta enquanto não repousa no Absoluto”.
Todavia, para sustentar esta afirmação, requer-se:
2.2 Coragem e Brio
O fato de que há verdades absolutas é altamente reconfortante e tremendamente assustador. Reconfortante, sim, porque a Verdade é luz, e fomos feitos para a luz. Assustador, porque exige a coragem necessária para enfrentar o que não quebra, o que não pode ser remodelado conforme as minhas dimensões subjetivas, mas exige que eu me configure a algo de objetivo ou a um modelo que está fora de mim e lançou seus germes em mim. Isto requer a vitória sobre o hedonismo, que pode aviltar a pessoa humana, tornando-a amorfa ou mesmo degradando-a à semelhança dos irracionais. Para formar a sua personalidade, todo ser humano precisa de possuir amor às causas nobres e belas, amor ao sacrifício que elas podem exigir; requer-se brio e honra para não permitir a degenerescência da dignidade humana. Será esse amor não lucrativo devidamente apreciado pela sociedade contemporânea? A solução de muitos problemas contemporâneos parece estar precisamente na restauração da virilidade para abraçar a verdade, cultivar o brio e a honra.
O Papa Bento XVI tem-se referido mais de uma vez ao perigo de relativizar a verdade. Eis o trecho de sua homilia proferida em Varsóvia (Praça Pilsudski) aos 26/05/06:
Assim como em séculos passados, também hoje as pessoas ou ambientes que se afastam dessa Tradição desejam falsificar a Boa-Nova e rejeitar do Evangelho as verdades que, segundo tais pessoas, são demasiado incômodas para o homem contemporâneo. Esforçam-se por dar a impressão de que tudo é relativo e de que as verdades da fé dependem da situação histórica e do julgamento humano. Todavia a Igreja não pode condenar ao silêncio o Espírito da Verdade.
Estas palavras falam não somente ao homem e à mulher de fé, mas a todo ser humano que tenha bom senso e guarde o coração livre.