Santo Isidoro de Sevilha: vida, obras, ideias

Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira

Presidente do Centro Dom Vital

 

Vida. De família originária de Cartagena, Isidoro (*Cartagena, 560; †Sevilha, 636) era o mais jovem de quatro irmãos: Leandro, Fulgêncio e Florentina. Seu irmão, Leandro, bispo de Sevilha, predecessor do nosso santo, foi o responsável por sua educação. Depois da morte de Leandro, por volta de 600, Isidoro é nomeado bispo de Sevilha. Em 619 convoca o II Concílio de Sevilha. Em 633 preside o IV Concílio de Toledo. Seu episcopado durou quase quarenta anos, influenciando enormemente a cultura espanhola e em seguida a europeia. Morre tranquilamente em sua cela aos 4 de abril de 636. O VII Concílio (653) declarou-o “doutor insigne, a glória mais recente da Igreja Católica”. Foi declarado Doutor da Igreja por Inocêncio XIII aos 25-IV-1722.

Obras. Gramaticais: Differentiae, sive de proprietate sermonum libri duo. Históricas: Chronicon, história universal que descreve os acontecimentos desde os primórdios até o ano de 616; Historia de regibus Gothorum, Vandalorum, Suevorum, continuação da obra anterior, escrita em 624; célebre o prólogo: De laude Spaniae; Liber de viris illustribus. Filosóficas: Liber de natura rerum; Liber de ordine creaturarum. Teológicas: Sententiarum libri tres, compêndio de fé (livro I) e de moral (livro II e III); foi um dos mais lidos na Idade Média e, por seu caráter sistemático, preludia a escolástica. Mais tarde, nele inspirar-se-ão outros autores de Sentenças, o mais famoso, Pedro Lombardo, no século XII; De fide catholica contra judaeos. A verdade do cristianismo como cumprimento do Antigo Testamento; Exegese: In libros veteris et novi Testamenti prooemia, introdução aos livros da Escritura; De ortu et obitu patrum, Qui in Scriptura laudibus efferuntur, descrição biográfica de sessenta e quatro personagens do AT e de vinte e dois do NT; Liber numerorum, qui in Sanctis Scriptura occurunt, manual mnemotécnico para os pregadores, com interpretação mística dos números; Allegoriae quaedam sacrae Scripturae; Quaestiones in Vetus Testamentum. Liturgia: De ecclesiasticis officiis, manual de Liturgia, especialmente importante para o estudo da liturgia visigótica. Espiritualidade: Synonimorum de lamentatione animae peccatricis libri II, diálogo de um homem pecador com sua razão. Regula monachorum. Direito: Collectio Canonum Ecclesiae Hispaniae, coleção de cânones que reeu a Igreja na Espanha até a reforma gregoriana. Enciclopédicas: Originum sive Etymologiarum libri XX, a mais famosa e importante obra de Isidoro, que, em vinte livros resume toda a cultura antiga.

Pensamento. O trabalho de Isidoro consiste, sobretudo, numa sistematização e universalização do saber. Seu método, entretanto, revela criatividade que deve ser reavaliada no pensamento contemporâneo, tão sensível ao tema da linguagem e às estruturas das palavras. De fato, seu método pretende partir das palavras para as coisas. O melhor exemplo disto são as Etimologias, certamente sua obra de maior sucesso. Contudo, hoje não se pode pôr em segundo plano obras como Diferenças ou da Propriedade dos Discursos em dois livros (Differentiae sive De Proprietate Sermonum Libri Duo).

Para Isidoro, Deus é fonte de todo bem e de toda incorruptibilidade. Os outros entes são bons por participação e, portanto, de modo limitado; e a matéria pode ser considerada o princípio que restringe o dinamismo de suas formas. Os graus dos entes são modos de participação nas perfeições que, por natureza, pertencem a Deus. A tendência de Isidoro é, pois, neoplatônica. Não obstante, Isidoro tem nova concepção do corpo que supera essa tradição, especialmente na versão de Agostinho.

Sua importância manifesta-se também nos seus estudos de direito, de política e de história. Ele é, ainda, fonte segura para o conhecimento da patrística, pois parece ter conhecido, no original, autores como Tertuliano, Boécio, Jerônimo, entre muitos outros. Por isso mesmo, Isidoro será referência e manancial de informações até a Escolástica. Santo Tomás cita as Etimologias com frequência em suas obras.

As Etimologias constam de vinte livros, que tratam de:

I. Gramática; II. Retórica e Dialética; III. Matemática, Música e Astronomia; IV. Medicina; V. Direito e Cronologia; VI. Bíblia e outros livros; VII. Teologia; VIII. A Igreja e as seitas; IX. Língua e Povos; X. Lexicologia; XI. Anatomia; XII. Zoologia; XIII. Geografia; XIV. Geografia; XV. Arquitetura e agrimensura; XVI. Mineralogia; XVII. Agricultura; XVIII. Guerra e torneios; XIX. Navios e casas; XX. Alimentos e ferramentas.

Antologia

Etimologias, X, 1: Sobre certos vocábulos dos homens

A origem de determinadas palavras não está clara para todos, especialmente de onde derivam. Por isso e para um conhecimento do assunto, escrevemos esta obra. É verdade que os filósofos explicam a origem das palavras, sua procedência. Por exemplo, mediante um critério de derivação, dizem que homo deriva de humanitas, e que sábio provém de sabedoria, porque primeiro existiu a sabedoria e depois o sábio; entretanto, a origem de determinadas palavras manifesta outra razão especial. Assim, homo deriva de humus, que é de onde propriamente recebe seu nome. Graças a exemplos como esses, incluímos alguns vocábulos nesta obra.

Etimologias, II, 24: Sobre a definição de Filosofia

A filosofia é o conhecimento das coisas humanas e divinas, acompanhado do esforço de bem viver. E consta de duas naturezas: a ciência e a opinião. A ciência se dá quando uma coisa é conhecida com certeza pela razão; a opinião, ao contrário, quando a coisa permanece incerta e nenhum conhecimento seguro se pode dar; como, por exemplo, se o sol é do tamanho que se vê, ou é maior do que a própria terra; ou ainda se a lua tem forma esférica ou é côncava; se as estrelas estão firmes no céu ou andam errantes no firmamento; qual é a magnitude do céu e de que matéria está composto; se permanece quieto ou imóvel, ou gira em incrível velocidade; qual é a grandeza da terra e sobre que fundamento se encontra sustentada e equilibrada. Isso tudo é, pois, expresso em seu próprio nome, que quer dizer em latim “amor à sabedoria”; pois, em grego, philos significa “amor” e sophía, “sabedoria”. A filosofia divide-se em três partes: a primeira, a natural, que em grego se chama física, em que se trata da natureza; a Segunda, a moral, chamada ética, em grego, e trata dos costumes; e a terceira, a racional, que em grego recebe o nome de lógica, estuda o modo pela qual se busca a verdade nos princípios das coisas ou nos costumes da vida.

Etimologias VII, 2: Sobre o Filho de Deus[1]

De muitas maneiras Cristo é designado nas divinas Escrituras. Pois sendo o Filho unigênito de Deus, igual ao Pai, tomou nossa natureza de servo para nos salvar: assim, uns nomes convêm a Cristo em razão da divindade e outros, em razão da natureza humana que assumiu.

É chamado, em primeiro lugar, Cristo, isto é, ungido. Era costume, entre os judeus, consagrar o unguento com que ungiam aos reis e sacerdotes; e assim como agora é a púrpura o distintivo real, assim outrora a unção conferia aos reis seu nome e autoridade, e por isso, se diziam, em grego, “cristos”, isto é, ungidos. E este nome, espiritualmente, se traslada ao Senhor, que foi ungido em espírito por seu Pai, como se lê nos Atos dos Apóstolos: “aliaram-se na cidade contra o teu Santo Filho, que ungiste” (At 4, 25). Não, certamente, com o óleo natural, mas com o unguento invisível da graça. Assim, o nome de Cristo, à diferença do nome de Jesus Cristo, não é exclusivo do Salvador, mas também nome comum de dignidade. O vocábulo “Cristo”, porém, esteve em uso naquele povo que anunciou o “Messias”, palavra que em grego se traduz como “Cristo”, e na língua latina, “Ungido”.

A palavra hebraica Jesus, em grego “Soter”, se traduz em latim por Salvador, porque veio salvar a todos os povos. E é esta etimologia que o evangelista indica quando diz: “chamarás seu nome Jesus, porque ele salvará seu povo” (Mt 1, 21). Como Cristo significa Rei, assim Jesus significa Salvador. Portanto não foi um rei qualquer que nos salvou, mas o rei Salvador; e este vocábulo de Salvador, embora pudesse tê-lo a língua latina (como quando quis a teve) antes não o tinha.

Emanuel, em hebraico, significa Deus conosco, porque Deus nasceu da Virgem e revestiu a carne de nossa mortalidade para nos abrir o caminho do céu. Os nomes que se referem à substância da divindade são Deus e Senhor. Diz-se Deus, por sua consubstancialidade com o Pai; diz-se Senhor, pelo domínio sobre as criaturas.

Diz-se Deus e homem, porque Verbo e carne. Daí também ser dito gerado duas vezes, pois o Pai o gerou na eternidade, sem mãe e a Mãe o gerou sem pai no tempo.

Unigênito chama-se ele segundo a excelência da divindade na qual não teve irmãos; Primogênito, segundo a humanidade assumida, pela qual teve irmãos na adoção da graça.

Homoúsion ao Pai diz-se pela unidade de substância; ousía significando essência, e homo-, o mesmo, e consequentemente o vocábulo significa consubstancial, conforme a Escritura: “o Pai e eu somos uma e mesma coisa”, isto é, somos consubstanciais. Embora esta palavra não se ache nas Escrituras, ao tratar-se da Trindade há razão para ser usada. Como aliás tampouco se diz nas Escrituras “ingênito do Pai”, e ninguém duvida que seja preciso dizer-se e confessar-se o Cristo como tal. “Homousion” se diz pela semelhança de substância; porque tal é Deus, tal é sua imagem, invisível Deus, invisível sua imagem.

Chama-se Princípio, porque dele derivam todas as coisas, e antes dele nada existiu. Fim, porque se dignou nascer, e morrer no fim dos tempos, e também porque se reservou o Juízo Final, e ainda a ele dirigimos nossas obras como a um fim, não havendo além dele finalidade ulterior a que possamos referi-las.

Chama-se Boca de Deus, porque é seu Verbo, e como pelas palavras se conhece a língua que as profere, assim, em lugar de Verbo, dizemos Boca de Deus, porque o costume é que as palavras se profiram oralmente.

Diz-se Verbo, porque o Pai tudo fez e ordenou por ele. Verdade, porque não engana, mas cumpre suas promessas. Vida, porque nos criou. Imagem, por sua semelhança de identidade com o Pai. Figura, porque na forma de servo refletiu, com suas obras e virtudes, a imagem e imensa grandeza do Pai. Mão de Deus, porque por ele se fizeram todas as coisas; e Mão direita, porque fez a totalidade da criação. Braço, porque tudo sustenta. Virtude, porque comunica todo o poder do Pai, contém, rege e governa o céu, a terra e todas as criaturas. Sabedoria, porque revela todos os mistérios da ciência, e os arcanos do saber. E, embora também o Pai e o Espírito Santo sejam sabedoria, virtude, luz e resplendor, estes nomes singularmente se acomodam ao Filho. Esplendor, chama-se porque manifesta o Pai. Lume, porque ilumina. Luz, porque ilumina a alma para a contemplação da verdade. Sol, por seus luminosos raios. Oriente, porque nos ilumina, ilustra e orienta para vida eterna. Fonte, porque é origem de todas as coisas, e refrigério de nossa sede. Alfa e Ômega, porque ao alfa nenhuma letra precede, sendo a primeira de todas; assim o Filho de Deus é o princípio, como disse aos judeus, e por boca de são João, no Apocalipse: “Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim” (Ap 21, 13). O primeiro, porque antes dele não houve nada, e o fim, porque se reversa o Juízo Final de todas as criaturas. Mediador, porque o é entre Deus e os homens, a fim de conduzir o homem a Deus; daí os gregos chamarem-no “Mesites”. Paráclito, porque é advogado para interceder ante o Pai por nós, como diz são João: “Temos um advogado ante o Pai, Jesus Cristo” (1Jo 2, 1), e o grego “paráclito” se traduz em latim “advocatus”, nome que se aplica ao Filho e ao Espírito Santo, conforme diz o Senhor no Evangelho: “rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito” (Jo 14, 15). Intercessor, porque cuida de remover nossas culpas e lavar nossos pecados. Esposo, porque desceu do céu e se conjugou à Igreja, a fim de serem dois numa só carne, na paz do Novo Testamento. Anjo, porque anunciou a vontade do Pai e sua. Daí o profeta chamá-lo “anjo do grande conselho”: é Deus o Senhor dos anjos. Enviado, porque apareceu no mundo e se fez carne, conforme a palavra: “saí do Pai e vim ao mundo” (Jo 16, 28). Homem, porque nasceu; Profeta, pois vaticinou; Sacerdote, pois nos ensina; Nazareno, pelo lugar de seu nascimento, e também porque é santo e puro, sem a mácula do pecado.

Jesus Cristo recebe ainda outros nomes menores, para que se torne mais fácil seu conhecimento. Diz-se Pão, pois é carne; Videira, pois nos remiu com seu sangue; Flor, enquanto eleito; Via, pois nos leva ao céu; Porta, pois nos introduz diante de Deus; Monte, por sua fortaleza; Rocha, por sua solidez; Pedra angular, porque uniu os muros da gentilidade e do judaísmo no mesmo edifício de sua Igreja, ou porque pacificou em si os anjos e os homens. Pedra de tropeço, porque em sua humildade tropeçaram os incrédulos, convertendo-se para eles em pedra de escândalo, conforme a palavra do Apóstolo: “é escândalo para os judeus” (1Cor 1, 23). Fundamento, porque nele se firma nossa fé, e se consolida a Igreja católica. Cordeiro por sua inocência; Ovelha, por sua paciência; Leão, por sua soberania e fortaleza; Serpente, por sua morte e também por sua prudência; Larva, porque ressuscitou; Águia, porque subiu aos céus.

E não é de se estranhar que se chame o Salvador com esses humildes vocábulos, pois se dignou descer à nossa passível natureza, assumir a humildade de nossa carne. Sendo incriado e eterno como o Pai, tomou a forma de servo e se fez homem por nossa salvação. Assim, uns nomes lhe convêm segundo a divindade; outros, segundo a humanidade que assumiu.

Segundo a divindade, ele mesmo diz; “meu Pai e eu somos a mesma coisa” (Jo 10, 30). Mas segundo a humanidade assumida afirma: “meu Pai é maior que eu” (Jo 14, 28). Ora os que não entendem transpõem para a divindade os nomes que convêm a nosso Senhor por sua humildade, e os nomes de pessoa à natureza, errando na fé.

De tal maneira assumiu o Filho de Deus a humana natureza, que das duas naturezas resultasse apenas uma pessoa. Assim, embora somente o homem tenha sofrido na cruz, foi Deus quem dizemos ter sofrido, por causa da unidade de pessoa. Donde, a Escritura: “Se o conhecessem, nunca o sacrificariam o Senhor da glória” (1Cor 2, 8). Nós confessamos que o Filho de Deus foi crucificado, não em virtude da divindade, mas na fraqueza da humanidade, não na impassibilidade da natureza divina, mas da humanidade que assumiu.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CAZIER, Pierre. Isidore de Séville et la naissance de L’Espagne catholique. Paris: Beauchesne, 1994.

DELHAYE, Philipe. La filosofía cristiana medieval. Andorra: Casal i Vall, 1961.

DI BERARDINO, Angelo (org.). Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002.

GOMES, Cirilo Folch. Antologia dos Santos Padres. São Paulo: Paulinas, 1973.

ISIDORO DE SEVILHA. Etimologías. Madri: BAC, 1993.

[1] Esta passagem é tradução de Dom Cirilo Folch Gomes. Cf. GOMES, Cirilo Folch. Antologia dos Santos Padres, p. 345ss.

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