Um “no momento” perturbador

Robson de Oliveira Silva

Membro do Centro Dom Vital

A literatura registra alguns exemplos de locuções adverbiais perturbadoras. Na escatologia de C. S. Lewis, “A última batalha”, com pragmatismo político digno de um Richard Rorty, Ruivo e o Rishda Tarcaã combinam a utilidade temporária de Manhoso. Assim “no momento” em que as circunstâncias mudarem, o macaco será o primeiro a ser sacrificado. Em “Rei Lear”, o ardiloso Edmundo revela a decisão de manter-se unido à Regan e Goneril “por enquanto (now then)”. A locução adverbial traça o perfil psicológico do personagem de Shakespeare, que usa as filhas do rei enquanto são úteis a seus interesses. Quando as circunstâncias mudarem, igualmente mudarão os sentimentos relativos às princesas. A tragédia grega de Eurípedes também nos ensina algo: até o leãozinho é grato pela generosa mão que o alimenta, mas apenas “no momento” do benefício. Quando crescer, o filhote de leão agirá como lhe ordena a natureza. Assim, a locução adverbial serve como alerta para os leitores: as coisas em breve podem mudar. A referência diz respeito à Clitemnestra, esposa dedicada, que não tardará em trazer infortúnio ao rei Agamenon e sua concubina.

O texto “O veto do Cristo é golpe de estado”, de 12/07 em O Globo, não merece atenção pela sua salada acusatória. A despeito da megalomania do cronista, que quer transformar o cumprimento de um inciso da Constituição Federal em uma crise republicana, o texto não é diferente de outras peças jornalísticas dos periódicos nacionais que são, há algum tempo, míopes, simplistas e – nesse caso particular – clichês históricos sobre religião, demonstrando quanto de paixão e subjetividade está tomado seu autor. Termos como “Santo Ofício”, “Bula” e “Absolutismo” só testemunham seu envolvimento visceral, minando a imparcialidade necessária à empresa jornalística. Outro ponto, porém, prendeu minha atenção.

Em certa parte do discurso, o texto diz que o direito pelo uso da imagem do Cristo Redentor é da Igreja Católica “no momento”. Confesso que a construção da frase inquietou-me. O que quereria dizer com ela seu autor? Será que pretendia propor que o Estado limitasse a ação civil da Igreja Católica? Será que ele acha saudável para um estado democrático que haja limites na ação civil das confissões religiosas? Ou que o direito das confissões religiosas de constituírem-se sujeitos sociais e de omitirem opiniões é um benefício concedido por generosidade e que pode ser retirado à sua revelia? Bem, não sei o que ele quis dizer, mas sei o que ele disse. No texto ele diz que quando a Igreja escolhe tomar decisões como essas, isto é, quando não cede a pressões da opinião pública, ela põe em risco a democracia e que, portanto, a democracia (que nesse caso se confunde com a opinião do articulista) deveria impor sua vontade sobre a Igreja, limitando – não se sabe como! – seus direitos sobre o Cristo Redentor.

Para essa batalha o artigo convoca a OAB, o Ministério Público, “o Judiciário como um todo” e todos os homens que se submetem à sua opinião. A questão é: por que parar por aí? Por que não impor limites também, sei lá, aos jornais paroquiais de todo o Rio de Janeiro que ,”no momento”, desafiam a democracia (claro, só os jornais daqueles padres que não se alinham ao juízo do articulista)? Afinal, eles também poderiam pôr em risco a democracia. E há também o jornal da Arquidiocese. E as rádios paroquiais. E a Rádio Catedral. Levando a sério a locução adverbial do articulista, é só uma questão de tempo até a sociedade civil impor limites às pretensões desses religiosos autoritários, que cometem o crime de dar opinião na vida pública.

Entretanto, parece que o zelo por defender o Rio e o Brasil do autoritarismo só se levanta quando a acusada é a Igreja Católica. Pois veja: em maio de 2014, quando o parlamentar Jorge Bittar defendeu abertamente o marco civil para as comunicações, o articulista não proferiu palavra em seu espaço no jornal; também em maio, quando o encontro de blogueiros, organizado pelo partido da situação, defendeu escancaradamente o controle da imprensa como meta governamental, novamente o silêncio tomou conta do articulista. Os arquivos do jornal estão lá para demonstrar que o articulista não emitiu qualquer rusga de crítica à tentativa do governo da situação de impor limites à imprensa. Ele não vê nessas atitudes risco de golpe institucional contra a República, mas acredita que a permissão ou recusa de uso de uma imagem em um filme atenta contra a democracia. Sou só eu ou temos aqui o que se pode chamar de zelo democrático “dirigido”?

Na perspectiva de muitos cidadãos fluminenses, o episódio não trata de censura. O leitor não se deixe enganar: não se trata de proibir a exibição de um filme. Nem de liberdade de expressão cultural. Não se trata do uso de uma imagem protegida por lei, nem de propaganda gratuita de um produto. Trata-se de algo muito maior! Algo que o autor não conhece e que, infelizmente, não parece respeitar. Trata-se do sentimento religioso de milhões de pessoas, pessoas que pagam seus impostos, pessoas que não querem ver o símbolo de sua fé servindo de achincalhe para um grupo de artistas. Essas pessoas têm ou não o direito de proteger sua fé e os símbolos que lhes são caros?

Um “no momento” perturbador
Os clichês jornalísticos acerca do tema religioso resistem ao tempo…

 

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on pinterest
Pinterest
logotipo branco do Centro Dom Vital

Associação de leigos católicos, dedicada, desde 1922, à difusão da fé e à evangelização da cultura no Brasil: revista A Ordem, palestras, cursos, etc.