Repensando o Modernismo – Alceu Amoroso Lima e as Contradições Modernistas

Leandro Garcia Rodrigues[1]

Diretor do Centro Dom Vital

Quando pensamos nos “modernismos” que o Brasil produziu, uma certeza solta à nossa frente: ainda temos muito que pesquisar, muita poeira cultural ainda se esconde pelos escombros do nosso passado. Certamente, o projeto heróico de São Paulo não foi a única versão de Modernismo que o Brasil testemunhou nas primeiras décadas do século XX, pesquisas têm mostrado o quanto a modernidade brasileira foi fragmentada e diversificada em forma e conteúdo. Um problema se torna gritante: antigos cânones e certezas vão perdendo o caráter engessado que os caracterizava, dando margem para outras possibilidades e semânticas às vezes intrigantes.

É o caso da participação/contribuição de Alceu Amoroso Lima, que viveu, interagiu e produziu sua gigantesca obra ao longo deste período que chamamos de Modernismo. Amoroso Lima circulou pelos principais espaços de produção da mentalidade modernista, fazendo contato com as mais diferentes correntes que conviviam nem sempre de forma harmoniosa. Desta forma, podemos dizer que ele ajudou a “pensar” a modernidade brasileira e acompanhou as suas múltiplas manifestações e transformações. São esses aspectos que vamos explorar adiante.

Um fato importante de ser lembrado é que os primeiros anos no Modernismo brasileiro se processaram durante a década de 20, e foi justamente neste momento que Alceu passava pela sua ebulição/calefação espiritual, que o diga a sua vertiginosa correspondência de seis anos com Jackson de Figueiredo, quando ao término da mesma se solidificou o seu retorno definitivo à Igreja. Tudo contribuía para que Alceu tivesse uma profunda aversão às novidades vanguardistas, principalmente a sua formação intelectual e o tipo de convívio cultural que tinha. A este respeito, Wilson Martins deu a dica do que “salvou” Alceu para o Modernismo:

O que o salvou para a literatura e para a posteridade foi justamente a espécie de disponibilidade espiritual em que então se encontrava e que lhe permitiu encarar com simpatia aquela revolução de jovens, distinguindo lucidamente o que nela havia de necessário e, apesar das aparências muitas vezes funambulescas, de sério e até de severo. (apud Coutinho, 1997, p.592)

Superando as expectativas negativas, a conversão de Alceu não significou o seu enclausuramento intelectual. O seu “Adeus à Disponibilidade” o fazia disponível às diferentes ideologias e estéticas, porém conservando os frutos que o trabalho da conversão fizera produzir. Foi um adeus ao materialismo e à ausência de Deus, não às idéias. Por isso que teve uma participação ativa nos debates que ajudaram a dar forma ao movimento modernista. Com isso, compreendemos as muitas lembranças desta fase heróica do Modernismo.

E nada melhor que um livro de memórias para que tais impressões viessem à tona. Quando foi publicado o seu Memórias Improvisadas, em 1973, no auge das comemorações dos seus oitenta anos, Alceu fez um excelente balanço histórico do Modernismo com a autoridade de quem vira tudo acontecer e, o mais importante, com uma larga distância no tempo, pelo menos uns cinqüenta anos em relação aos momentos por ele aludidos, o que forneceu maior flexibilidade analítica e uma privilegiada visão de conjunto. À pedido do entrevistador, Medeiros Lima, que fizesse um balanço do movimento, Alceu assim começou:

O modernismo em princípio foi a negação do marasmo, do academicismo, da subserviência à literatura portuguesa e a certo e vago cosmopolitismo. […] Como manifestações positivas são características: 1) a afirmação da liberdade em arte, o que fez do modernismo uma espécie de neo-romantismo; 2) o reconhecimento do direito à pesquisa estética, de um estilo novo, pela ruptura com a arte poética e a vernaculidade gramatical imposta; 3) a afirmação de temas e inspirações nacionais; 4) o reflexo de movimentos análogos que se processavam no estrangeiro e que a guerra trouxe à tona, como o futurismo, o cubismo e o supra-realismo; 5) a afirmação de que o tempo é o critério de valores; 6) a procura da originalidade, o afastamento dos modelos. (Lima, 1973, p.71)

Em princípio, Alceu não disse nada diferente do que tradicionalmente se relega ao movimento modernista, principalmente numa perspectiva didática. Foram as bandeiras apresentadas e defendidas por aqueles que militaram na tal transformação da nossa mentalidade literária. Contudo, um aspecto é necessário ressaltar: “a afirmação de que o tempo é o critério de valores”.

De fato, a distância diacrônica entre a fase dos acontecimentos e o momento das lembranças fez com que Alceu e outros críticos apresentassem interessantes análises, especialmente no que diz respeito às diferentes participações de intelectuais neste período de construção do ideário moderno em nossas letras. A este respeito, afirmou Afrânio Coutinho:

O Modernismo, de seu lado, beneficiou-se do apoio de dois nomes estranhos aos seus quadros e, por isso mesmo, tanto mais valiosos: o de Tristão de Athayde que, iniciando a sua crítica num grande jornal carioca, em 1919, já usufruía, em 1922, de certo prestígio, e o de Graça Aranha, que representava uma cabeça de ponte na Academia – precisamente o único lugar em que os primeiros modernistas nenhuma cabeça desejavam estabelecer. Mas, a presença de alguns “respeitáveis” ao seu lado dava-lhes uma sorte de “aval” de que, social e subconscientemente, tanto necessitavam. Junte-se, então, mais este paradoxo à história do Movimento: revolução espiritual antiacadêmica por excelência, não repudiou a lisonja representada pela adesão de três eminentes espíritos acadêmicos e conservadores: Graça Aranha, Paulo Prado e René Thiollier. (Coutinho, 1997, p.592)

Certamente, este foi a primeira e principal contradição do movimento modernista brasileiro: a vanguarda e a tradição caminhando lado a lado, imbricando-se mutuamente, ora convergindo, ora divergindo. A própria organização da Semana de Arte Moderna foi prova disso. Primeiramente o espaço escolhido, o Teatro Municipal de São Paulo, que naquele momento era um dos principais monumentos da arquitetura neoclássica da capital paulista. Imaginemos o que deve ter sido a exposição organizada no saguão de entrada – as “estranhas” pinturas cubistas de Anita Malfatti e Di Cavalcante e as esculturas esquisitas de Brecheret – todas sendo devidamente ladeadas pelas imponentes colunas gregas do prédio, isto sem dizer da imponente rotunda de tendência renascentista bem ao alto.

E o que dizer de Paulo Prado, principal patrocinador do evento? Simplesmente foi um dos maiores representantes da agroindústria cafeeira, filho, neto e bisneto de antigos barões do café, um dos poucos empresários brasileiros que não faliram após a Crise de 1929. Foi Paulo Prado quem pagou o aluguel do Teatro Municipal para as três noites do evento, 13-15-17 de fevereiro de 1922, após as negociações pecuniárias feitas por René Thiollier. Ou seja, dentre os tantos aromas que circularam durante a Semana, um deles foi o do café, vindo diretamente das antigas fazendas do interior paulista com suas tradicionais famílias oligárquicas. René Thiollier nos fornece um relato a respeito das negociações para a Semana de 22:

Fui, por sugestão de Paulo Prado e Graça Aranha mais que um animador da “Semana”, fui seu empresário. Basta dizer que o Teatro Municipal me foi cedido, a mim, por alvará de 6 de fevereiro de 1922, pelo então prefeito da nossa capital, o saudoso Dr. Firmiano Pinto, que muito me distinguia com a sua amizade; consegui ainda de outro amigo meu o Sr. Dr. Washington Luiz Pereira de Souza, Presidente do Estado, que seu governo custeasse uma parte das despesas com a hospedagem dos artistas e escritores que vinham do Rio.Alem disso, organizei um comitê patrocinador da “Semana”, composto dos Srs. Paulo Prado, Antonio Prado Junior, Armando Penteado, Edgard Conceição, José Carlos de Macedo Soares, Oscar Rodrigues Alves, Alberto Penteado, Alfredo Pujol e eu. (Thiollier, 1930, p.5)

Com essas palavras, entendemos o que disse Afrânio Coutinho quando afirmou que o Modernismo nasceu sob o signo do grande paradoxo: futurista por um lado, conservador por outro. E mais ainda, o reconhecimento de Alceu para quem “o tempo é o critério de valores”, encaixa-se aqui perfeitamente. Pois apenas com o passar dos anos as revisões foram sendo feitas e as arestas ideológicas aparadas[2]. Ainda sobre a relação passado e modernidade, Alceu forneceu uma outra idéia:

Realmente, esse primeiro período produziu mais idéias que obras. O que caracteriza o final da década de vinte a trinta são as obras que já agora representam a concretização dessas idéias. […] Ao contrário de que muita gente pensa, passado e moderno não se repelem, mas se completam e conciliam. Foi no final da década de vinte a trinta, com o aparecimento da geração nordestina, que as obras superaram os manifestos e as idéias. […] O que quero dizer precisamente é que a primeira vaga modernista foi mais doutrinária do que prática. Os próprios doutrinadores de então só posteriormente dariam sua contribuição definitiva às letras. Todos começaram oferecendo idéias para só depois produzirem as obras. (Lima, 1973, p.73)

Os primeiros anos do Modernismo foram marcados pela intensa circulação de idéias. A prosa praticamente inexistiu, toda a concentração estilística estava a cargo da poesia e de outros gêneros como as conferências, os artigos para a imprensa, a ensaística, entrevistas, correspondência etc. Toda essa produção tinha o intuito de fomentar o debate de ideias e levantar o máximo de propostas, daí a afirmação de Alceu de que o “primeiro período produziu mais ideias que obras”. Tal opinião foi corroborada pelo crítico Wilson Martins, que comentou sobre o mesmo assunto: “O Modernismo, em sua fase propriamente revolucionária ou aguda, nada produzirá como criação, parece irremediavelmente condenado ao pitoresco e ao efêmero.” (apud Coutinho, 1997, p.591).

Outra questão que Alceu levantou e que foi muito debatida era a relação entre Tradição e Modernidade. Alguns espíritos mais aguerridos como Oswald de Andrade, caracterizavam-se em defender a existência de certo “rolo compressor do passado”, isto é, o Modernismo era inconciliável com as mentalidades canônicas. Para Oswald, vivíamos num outro momento da nossa cultura, onde deveria existir a lei do Novo. Alceu discordava totalmente deste direcionamento, para o crítico, as duas instâncias temporais podiam se conciliar, uma enriquecendo a outra.

Para Amoroso Lima, “ser moderno” era também saber selecionar e aproveitar os valores benéficos da Tradição, e não simplesmente exterminá-la como alguns defendiam. Devia-se buscar um Modernismo de inclusão, ou seja, um estilo que se implantasse não ignorando o passado enquanto possuidor de boas e ricas experiências. Alceu defendia a idéia de que certos resquícios estilísticos não construtivos – os passadismos – deveriam der evitados, identificados e deixados de lado, pois não contribuíam para essa nova proposta de estilo. Além de tudo, tal estilo não tinha nascido no Brasil, foi importado da Europa como todos os outros; por isso mesmo, como evitar as influências da Tradição? Sobre este tópico, Alceu escreveu:

É incontestável que o modernismo não nasceu no Brasil, como nenhum movimento dessa espécie eclodiu primeiro entre nós. É preciso não esquecer que somos uma civilização de repercussão, uma extensão de acontecimentos que se passam fora de nossas fronteiras. Mas, uma vez incorporados ao nosso meio, começam a sofrer a influência da contribuição nativa. Já em 1904, Marinetti fazia modernismo. Segundo a lei de José Veríssimo, chamada lei dos vinte anos, só passado esse tempo as novas idéias então em ebulição na Europa chegariam ao Brasil. (Lima, 1973, p.74)

Para Amoroso Lima, era impossível ignorarmos a Tradição, fomos moldados literariamente pelos cânones europeus, e o nosso primeiro grito de socorro e independência se deu apenas no século XX. É bem verdade que o Romantismo ensaiou certas experiências de autonomia literária, mas ainda assim o seu espírito era europeizante, o heroísmo dos nossos índios estava mais para as novelas medievais de Alexandre Herculano do que para a tradição indígena brasileira. E o que dizer do nosso mal-do-século? Todo ele bebeu nas canecas cheias de spleen e morte da tradição byroniana. Daí a justificativa para Alceu ter afirmado que sempre fomos (e somos ainda) uma “civilização de repercussão”. Repercutimos a Europa nos seus erros e acertos.

Outro fator importante levantado por Amoroso Lima neste fragmento diz respeito à problemática da temporalidade, da cronologia dos acontecimentos histórico-culturais. Se olharmos pro passado distante da Literatura Brasileira, verificamos que o tempo que um estilo demorava para chegar ao Brasil era bem maior, às vezes um século, que o diga o nosso Barroco, por isso a sempre difícil tarefa de lidar com datas. Mais adiante nas suas memórias, Alceu novamente analisou o início do nosso Modernismo:

O Modernismo não só se revestiu de características brasileiras como populares, apesar de liderado por um grupo de elite intelectual e social. Era antes de tudo uma tomada de consciência da realidade nacional através de um estímulo internacional, que era a revolução literária que vinha se processando desde o princípio do século mas que dela não se tomara aqui conhecimento, vivendo-se à sombra da Academia. (Lima, 1973, p.75)

Outra importante problemática levantada por Alceu diz respeito à inserção dos aspectos da cultura popular na produção modernista. Isto se deu especialmente na poesia, principal gênero explorado pela primeira geração. Para alguns críticos, foi o Modernismo que pesquisou e estetizou as manifestações populares, num amplo programa de valorização da cultura nacional. O principal movimento neste sentido se deu com Mário de Andrade, especialmente após o início de sua correspondência com o folclorista Câmara Cascudo.

Luis da Câmara Cascudo era descendente de uma das famílias mais ricas do Rio Grande do Norte. Nosso maior folclorista manteve uma intensa amizade com os principais nomes da literatura modernista. Monteiro Lobato discutiu com ele as primeiras páginas de Reinações de Narizinho. Manuel Bandeira disse-lhe uma vez que sua Pasárgada era o sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte. Foi Mário de Andrade, no entanto, quem o tomou por confidente e manteve uma imensa correspondência com o escritor potiguar, falecido em 1986. Numa carta a Manuel Bandeira, em 13 de Maio de 1960, Cascudo escreveu ao amigo (num tom de lembrança) o que o levou a pesquisar o folclore:

Eu não achava graça no que se escrevia por aqui. Era tudo na base do “alto gabarito”. Eu achava graça mais era no trivial cotidiano. Comecei a fazer rodapés, “ronda da noite”, acompanhava a cavalo a ronda policial e ia descrever o que via, pileques e prostitutas, brigas e trapaças. O escândalo maior era ser feito por um menino rico. Depois, vieram naturalmente coisas como a Festa dos Reis Magos. Tanta coisa que Mário de Andrade não podia compreender. Pensava que eu tinha sido levado à cultura popular pela erudição. Mentira! A cultura popular é que me levou a esta. Por esta sala já passaram Juscelino e Villa-Lobos, vários presidentes, mas aqui também vieram Jararaca e Ratinho.[3]

Cascudo inverteu a premissa de que foi a partir de uma profunda erudição clássica que adquiriu o conhecimento da base popular. Segundo ele, o popular é que “iluminou” o erudito, fato este que seduziu o autor de Lira Paulistana. Mário de Andrade tomou contato com Cascudo por intermédio do poeta pernambucano Joaquim Inojosa, que lhe mandou o recorte de um artigo do folclorista. A partir de então, iniciaram-se a correspondência e a amizade entre os dois.

Mário viajou pelo interior de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte recuperando histórias e danças populares. Em tal viagem, Mário descobriu o Brasil das danças dramáticas, dos autos que a Idade Média nos legou através da colonização portuguesa, tendo sempre como cicerone o amigo Câmara Cascudo. No prefácio da edição parisiense do Turista Aprendiz, o crítico francês Gilles Lapouge escreveria que esse é o momento em que os modernistas “assaltam seu país para revirar tradições, canções, lendas, a dor e os homens da terra para decifrar seus silêncios e não para colecionar índios de comédia, flechas e plumas.” (Andrade, 1983, p.6). Numa de suas inúmeras cartas a Câmara Cascudo, Mário alertou e até mesmo “direcionou” a pesquisa do amigo:

Minha convicção é que você vale muito mais que o que já produziu. […] Você tem a riqueza folclórica aí passando na rua a qualquer hora. Você precisa um bocado mais descer dessa rede em que você passa o dia inteiro lendo até dormir. Não faça escritos ao vaivém da rede, faça escritos caídos das bocas e dos hábitos que você foi buscar na casa, no mocambo, no antro, na festança, na plantação, no cais, no boteco do povo. Pare com essa coisa de ficar fazendo biografias de Solano López, conde D’Eu, coisas assim. (Andrade, 1991, p.85)

Segundo os seus biógrafos, esta carta de Mário foi fundamental na total mudança de rumos que sua atividade de pesquisador tomou dali para frente. Cascudo (ou Cascudinho, como Mário passa a chamá-lo) direcionou todo o seu interesse para a cultura popular, tornando-se um paradigma a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, utilizaram este rico manancial que ajuda a nos configurar culturalmente. Por esses aspectos percebemos a sua importância para o Modernismo, já que vários artistas se reportam a Luís da Câmara Cascudo para tirar dúvidas, enviar opiniões, pesquisar acerca do nosso folclore e, o que mais nos interessa, incluir parte deste conhecimento nas suas respectivas obras, como muito bem demonstra um estudo mais aprofundado da sua correspondência.

Desta forma, confirmamos ainda mais a premissa de que o regional pode ser também nacional e universal, principal desejo da primeira geração. Assim, entendemos as palavras de Alceu: “O Modernismo não só se revestiu de características brasileiras como populares”. Era um tempo de redescoberta do próprio Brasil e, principalmente, da sua cultura ainda marginalizada. A “sombra da Academia” ainda era extensa, espaçosa.

Dentro desta problemática da cultura popular, um fato realmente intrigante foi a valorização, por parte dos principais ideólogos modernistas, de uma figura deveras instigante da nossa história cultural: Sílvio Romero. O crítico que arrumou tanta briga e tantos desentendimentos no passado voltava à produzir eco no meio literário brasileiro. Foi por iniciativa de Monteiro Lobato que a famosa História da Literatura Brasileira, que Romero publicou em 1902, recebia a sua segunda edição no final dos anos 20. O motivo do namoro entre os modernistas dos primeiros tempos e Sílvio Romero foi justamente por causa da defesa, que Romero fazia de forma intransigente, da cultura popular.

Sílvio Romero repudiava o clima exageradamente afrancesado da Literatura Brasileira, especialmente da Crítica Literária então produzida no Rio de Janeiro. Além disso, o exigente crítico também valorizou muito a produção literária circulada nos Centros Literários de alguns estados, onde a cultura popular tinha larga aceitação, principalmente na poesia. Daí justificar-se o novo valor dado pelos primeiros modernistas a este pensamento de Sílvio Romero. Numa comparação mais ampla, ele encarnava alguns dos principais ideais da primeira geração modernista, particularmente o rompimento com a cultura estrangeira canonizada.

Estes aspectos levantados fornecem excelentes pistas para reconsiderarmos certas abordagens da nossa história modernista. O movimento foi extremamente lacunar, com inúmeros espaços semânticos e estilísticos que ainda hoje merecem uma boa pesquisa. Neste sentido, as reminiscências de Amoroso Lima são fundamentais, uma vez que iluminam certas nebulosidades da nossa historiografia literária. Mais uma vez, temos Alceu relembrando e avaliando a primeira geração deste movimento:

A geração modernista, à qual pertenço, surgiu, assim, sob o peso de influências contraditórias. Tínhamos um pé no passado e outro no futuro. Em 1922 encontramo-nos todos diante de uma opção. Mas é claro que então não tínhamos consciência do papel que estávamos chamados a desempenhar. Não, não se tinha a menor noção da importância dos acontecimentos que se estava vivendo. Havia uma preocupação de mudança, de busca, de soluções para os problemas que nos angustiavam. E isto era tudo. (Lima, 1973, p.85)

Estas afirmações de Alceu nos permitem uma série de análises e provocações. Primeiro falemos acerca das “influências contraditórias”, do fato de que o crítico tinha um “pé no passado e outro no futuro”, temática sempre recorrente nas suas análises memorialísticas do Modernismo. Já falamos que Alceu nasceu pra literatura numa fase paradoxal da sua vida. Após uma formação e um estilo de vida marcadamente clássicos (no sentido conservador deste termo), ele rompeu para a idéia de modernidade, ora demonstrando imensa flexibilidade ideológica, ora repetindo certos preconceitos da crítica tradicionalista.

Entretanto, esse “drama” não foi vivido apenas por Alceu. Ele foi bem claro: era um problema de geração. Por isso veremos outros casos semelhantes desta mesma situação. Um excelente exemplo se encontra no epistolário de Mário de Andrade e Manuel Bandeira, ambos representaram bem toda essa confusão gerada pela permanência do passado na modernidade. Numa carta a Mário, em 03 de janeiro de 1925, Bandeira afirmou:

Está certo o que você diz no artigo e na carta sobre modernismo e simbolismo. Sou, de fato, de formação parnasiano-simbolista. Cheguei à feira modernista pelo expresso Verlaine-Rimbauld-Apollinaire. Mas chegado lá, não entrei. Fiquei sapeando de fora. É muito divertido e a gente tem a liberdade de mandar aquilo tudo se foder, sem precisar chorar o preço da entrada. Quando publiquei o Carnaval, ignorava completamente o movimento moderno. Não sabia que estava “escrevendo moderno”. Ainda hoje, e você deve ter sentido isso nas nossas conversas de São Paulo, conheço mal toda essa gente. (apud Moraes, 2001, p.175)

O que mais chama a nossa atenção é o fato de que Bandeira estava produzindo uma literatura hoje classificada como modernista. Contudo, naquele momento, o poeta não tinha qualquer noção de tal fato, ignorava totalmente a classificação crítica do seu livro, isso sem dizer na sua postura confessadamente parnasiano-simbolista e não modernista, sem sequer “conhecer essa gente”, isto é, ignorando em alguns momentos os seus contemporâneos de produção artística.

Importante lembrar que estávamos no ano de 1925, portanto, já passados três anos desde os escândalos da Semana de Arte Moderna, e ainda assim certos artistas não tinham a exata noção do seu contexto. É quando compreendemos a afirmativa de Alceu no fragmento anteriormente citado: “Não, não se tinha a menor noção da importância dos acontecimentos que se estava vivendo”. Tal falta de noção levou Mário a inquietar-se, tanto que assim expressou a Bandeira, numa carta de 18 de abril de 1925:

Uma queixa irônica e a minha definitiva repulsa do nome de moderno dado pra mim. Você compreende, Manuel, eu hoje sou um sujeito que tem muitas preocupações por demais pra me estar amolando com essas burradas de modernismo e passadismo. “Eu é que sou moderno!” Ora, isso hoje pra mim não significa coisa nenhuma. Tenho mais que fazer. Não estou fazendo blague, não. É uma coisa que está a cem léguas de mim o modernismo. Que significa ser moderno? Ser moderno, ser antimoderno, ora bolas! Sou, isso é que é importante. (apud Moraes, 2001, p.201)

Na verdade, nem o próprio Mário sabia a definição do que era ser modernista, o movimento estava sendo construído, passava por um processo, e os nossos artistas tiveram o privilégio de participarem dessa construção, sem terem a exata noção do que estava acontecendo e do respectivo papel de cada um, somente o distanciamento temporal permitiu-nos avaliar a participação de cada um.

Alceu, enquanto crítico literário, percebeu claramente o problema da sua geração, por essa razão que escreveu o sintomático artigo A Escrava que não é Isaura, título homônimo ao livro de Mário de Andrade, que foi publicado em O Jornal, na edição do dia 26 de abril de 1925. Neste artigo, Alceu fez uma série de análises quanto às permanências de “valores passadistas” (como era comum denominar naquela época) na obra de Mário. Destacamos a seguinte passagem:

De tudo o que se depreende, sobretudo, é uma necessidade de construir, de procurar novos caminhos, sem abandonar o passado, antes procurando sempre o que há de vivo eterno nele. E isso torna o Sr. Mário de Andrade talvez o elemento mais interessante e mais valioso do atual modernismo brasileiro. Sinto que nele se embatem agora modernismo e anti-modernismo. Não no sentido de voltar, mas no sentido de superar. (apud Moraes, 2001, p.201)

Alceu foi direto ao cerne do problema: em Mário, lira e anti-lira se digladiavam constantemente. A força que o impelia à transgressão era tão forte como aquela que o puxava à conservação das tradições. Era o mesmo escritor bifurcado pela vontade de abandonar Deus e, ao mesmo tempo, com medo de ficar distante do Criador. Era o poeta que conseguiu escrever Há uma Gota de Sangue em Cada Poema e, quatro anos depois, fez surgir Paulicéia Desvairada, obras radicalmente opostas quanto à forma e à linguagem. Por essas considerações que concordamos com a opinião de Alceu, que percebeu que “nele [Mário] se embatem agora modernismo e anti-modernismo. Não no sentido de voltar, mas no sentido de superar”. Os comentários de Alceu receberam uma boa recepção de Mário, tanto que, em outra carta a Manuel Bandeira, do dia 07 de Maio de 1925, o poeta paulista afirmou:

O Tristão me parece mas é um psicólogo muito esperto. Ele me disse no final alguma coisa de mim que eu ainda não me dissera. Não que eu lute entre modernismo e anti-modernismo, só que hoje não encontro mais significado pra palavra modernismo. Tenho coisas mais importantes a fazer e que pensar. Não sei mais se faço modernismo ou passadismo, faço. Já me basta esta autocrítica que me dá muito sofrimento pra ainda estar pensando se sou moderno ou não! (apud Moraes, 2001, p.208)

Com essas palavras, percebemos claramente que Mário não se importava muito em estabelecer definições técnicas que pudessem tolher o sentido artístico da sua obra, ele simplesmente “fazia”, isto é, produzia sem uma necessidade cega de sistematização metodológica, como acontece com alguns autores e críticos. Essa sua postura foi mais defendida nos anos 20, na fase dos primeiros ajustes do Modernismo. Duas décadas depois, quando ele fez algumas avaliações desta Escola, seu discurso classificatório foi bem diferente, dando a devida nomenclatura a certos artistas e respectivas obras.

“Tínhamos um pé no passado e outro no futuro”. Alceu não podia sintetizar melhor os desafios e limites da sua geração artística, era o norte e o sul se batendo dentro de cada um, às vezes um ou outro com mais força, com mais sangue estilístico. Para finalizar esse levantamento revisionista do Modernismo, Amoroso Lima forneceu as seguintes idéias:

O Movimento Modernista, tanto pelas suas fontes de inspiração como pelos elementos que o lideravam, era um movimento essencialmente estético, sem qualquer vinculação de ordem política. […] Estavam todos muito interessados em divulgar e defender suas idéias esteticistas para se deixarem arrastar por outra ordem de considerações. (Lima, 1973, p.85)

Todas essas considerações Alceu fazia tendo como referência os produtos obtidos pela primeira geração. Esta sim, como já analisamos, teve uma atuação estritamente estética e polemista, onde produção e polêmica caminhavam juntas, uma alimentando a outra e as duas fortalecendo a nossa complexa vida literária. A vinculação com a ordem política veio mais tarde, com a próxima geração que tratou de assuntos relativos à realidade social e à política brasileira.

Desta forma, percebemos que o Modernismo brasileiro não teve o seu início marcado por uma “glória revolucionária” ou “uma revolução estética” que englobou todos os artistas; ao contrário, foi um projeto (em alguns casos, uma proposta) que provocou debates, cisões, intrigas e adesões. Como Amoroso Lima gostava de dizer: “foi um projeto lacunar”, no qual as sintomáticas lacunas foram preenchidas (ou não) por diferentes linguagens, provocando uma diversidade de estilos e semânticas.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, M. de. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora S.A., 1972.

____________________. Cartas de Mário de Andrade a Luis da Câmara Cascudo. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991.

__________________. Mário de Andrade escreve Cartas a Alceu, Meyer e Outros. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1968.

__________________. O Empalhador de Passarinho. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.

__________________. Vida Literária. São Paulo: EDUSP/HUCITEC, 1993.

COUTINHO, A. A Literatura no Brasil – Era Modernista. São Paulo: Global Editora, 1997.

LIMA, A. A.. A Estética Literária e o Crítico. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1954.

___________________. Estudos Segunda Série. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1934.

___________________. Estudos Quinta Série (1930-1931). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933.

___________________. Memorando dos 90. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984.

___________________. Memórias Improvisadas – diálogos com Medeiros Lima. Petrópolis: Vozes, 1973.

MORAES, M. A.(org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: EDUSP, 2002.

RODRIGUES, L. G. Uma Leitura do Modernismo – Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2003.

THIOLLIER, R. A Semana de Arte Moderna. São Paulo: Cupolo, 1930.

[1] Doutor e Pós-doutor em Estudos Literários pela PUC-Rio. Contato pessoal: prof.leandrogarcia@hotmail.com. Texto publicado na revista A Ordem, volume 97, novembro de 2009.

[2] Já que estamos falando em revisões do Modernismo, foi interessante o que escreveu Yan de Almeida Prado, em 1972, nas comemorações dos cinqüenta anos da Semana de Arte Moderna: “A Semana de Arte Moderna pouco ou nenhuma ação desenvolveu no mundo das artes e da literatura. Nem com extrema boa vontade pode ser comparada à Vila Kyrial de quem pouco se fala. Veio pouco depois dos esforços de Freitas Vale a favor das artes entre nós, sem o brilho e o alcance da Vila, rapidamente desvanecidos os sete dias hoje famosos, não fosse o interesse dos Andrades em mantê-los na lembrança do respeitável público. Pensar-se de modo diverso, crer que a Semana descobriu gênios e influiu na evolução das artes e das letras da Paulicéia e do Brasil, é imaginação de ingênuos, ou cálculo de espertinhos à espera de que as loas por eles dedicadas ao tal prodigioso acontecimento possam favorecê-los, como sucedeu a outros beneficiários de blefes semelhantes aos do jogo de pôquer, mirificamente dadivosos para os que sabem aplicá-los”. Disponível: http://www.portalartes.com.br/portal/semana_de_22_yan_de_almeida_prado.asp

[3] Arquivo Manuel Bandeira, Casa de Rui Barbosa, pasta 47.

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