No seu polêmico Tratado Teológico-Político, Spinoza não poupa elogios ao apóstolo Paulo de Tarso, e afirma: “Paulo distingue duas maneiras de pregar, uma pela revelação, a outra pelo conhecimento, e daí, repito, o podermo-nos interrogar se nas epístolas eles [os apóstolos] profetizam ou ensinam” (Paulo duo praedicandi genera indicat, ex revelatione unum, ex cogitatione alterum, atque ideo inquam dubitandum, an in Epistolis prophetent, an vero doceant[1]).
Que há de filosófico em Paulo de Tarso? Seu contexto filosófico é marcado pelo estoicismo, pelo epicurismo e pelo ecletismo. É do estoicismo, contudo, que surge um testemunho peculiar sobre o contexto cultural paulino. Trata-se do suposto epistolário[2] entre Sêneca, filósofo estoico romano, e o Apóstolo das Gentes, que recebeu um prólogo de São Jerônimo:
Lucius Anneus Seneca Cordubensis, Sotionis stoici discipulus et patruus Lucani poetae, continentissimae vitae fuit. Quem non ponerem in catalogo sanctorum, nisi me illae epistolae povocarent quae leguntur a plurimis, Pauli ad Senecam aut Senecae ad Paulum, in quibus, cum esset Neronis magister et illius temporis potentissimus, optare se dicit eius esse loci apud suos cuius sit Paulus apud Christianos. Hic ante biennium quam Petrus et Paulus martyrio coronarentur a Nerone interfectus est.
Lúcio Aneu Sêneca, discípulo do estoico Socião e tio paterno do poeta Lucano, levou uma vida sóbria. E não o incluiria neste catálogo [que trata] dos santos, se não me induzissem a isso aquelas cartas que são lidas por muitos, cartas de Paulo a Sêneca e de Sêneca a Paulo, nas quais, mesmo sendo o mestre de Nero e o homem mais poderoso de seu tempo, diz que desejaria ser tido em conta entre os seus como Paulo entre os cristãos. Nero fê-lo morrer dois anos antes que Pedro e Paulo recebessem a coroa do martírio.
Uma possível linha de aproximação das fontes filosóficas de Paulo tem natureza histórica. Com efeito, podem-se encontrar alguns conceitos que permitem vislumbrar a relação histórica do pensamento de Paulo com a filosofia grega; estes conceitos provêm principalmente do estoicismo.
Outra linha de investigação, de caráter não histórico, que se pode chamar de metafísica, consiste em descobrir a filosofia implícita no pensamento de São Paulo. Com efeito, há metafísica implícita em toda a Sagrada Escritura. Com isso, não se tem, contudo, a intenção de apresentar Paulo como filósofo: sua perspectiva é a do crente, do “teólogo”, que usa da razão e da cultura para a explicação de sua fé. Ele pode ser considerado o inspirador do que se chamou filosofia cristã, como o testemunha Sertillanges, em sua famosa obra de aproximação entre cristianismo e filosofia[3]:
A expressão não é exagerada. Basta ler as Epístolas para constatar que à veemência apostólica e ao impulso místico, Paulo junta uma faculdade de abstração e de penetração psicológica ou metafísica na medida dos mais altos problemas. Deus como ser primeiro, o Deus Criador no sentido pleno do termo, o Deus providente e o Deus-Amor não poderiam ser afirmados com energia mais concisa. A prova cosmológica e também a prova moral pelos postulados da razão prática estão esboçadas na epístola aos Romanos 2.
A terceira perspectiva poderia ser o juízo que os filósofos, ao longo da história do Cristianismo, proferiram a respeito do Apóstolo. De Clemente de Alexandria a Agostinho; de Tomás de Aquino a Spinoza; e de Nietzsche a Bertrand Russell, surgiriam os mais variados percursos para admitir que Paulo seja fonte e referência para as mais distintas intuições filosóficas. Como defende Spinoza, Paulo não fala como profeta, mas como doutor, ou seja, não usa imagens e, sim, o silogismo para apresentar sua fé. Embora reducionista, este testemunho não é totalmente desprovido de fundamento, pois o próprio apóstolo o confirma em suas cartas.
O que importa é saber, ao menos em grandes linhas, que filosofia imperava nos tempos de Paulo. Em Atos 17, lê-se a famosa passagem em que Paulo busca dialogar com o mundo filosófico de Atenas, ao recorrer à imagem do Deus Desconhecido. Testemunha-se aí a presença do epicurismo e do estoicismo ou do neoestoicismo. O rigor moral desta tendência filosófica é marca definitiva do cristianismo imediato. A questão é saber até que ponto o próprio Paulo recebeu tal influência e que trouxe de novo para o pensamento filosófico que se desenvolverá nos dois mil anos seguintes.
Os grandes conceitos paulinos
O conhecimento que o apóstolo Paulo oferece é o conhecimento da fé. O logos de Paulo é digno de fé, Pistós hó logos, 1Tm 1, 15. Esta palavra digna de fé nasce do próprio Deus, que inaugura o conhecimento por tradição. “Na mente de Paulo o cristianismo ultrapassa de longe qualquer sistema filosófico, ético ou especulativo[4]. Em outras palavras, não se trata de conhecimento humano, gnôsis, mas de conhecimento sobrenatural, epígnosis, termo típico de Paulo, que aparece quinze vezes em seus escritos. Seja do modo que for, o conhecimento natural não fica excluído, conforme a passagem de 1Cor 11, 14, onde se lê: “ensina a natureza…”.
A terminologia antropológica de Paulo é de origem hebraica. Entretanto, se compararmos alguns termos típicos da teologia paulina a esse respeito com a terminologia grega, podem-se descobrir alguns aspectos do helenismo. Carne, sárx, não é uma parte do homem, mas o corpo inteiro, o homem inteiro do ponto de vista de sua existência física, de suas fraquezas e mortalidade em contraste com Deus. O termo sôma, corpo, menos frequente, é quase o mesmo que o anterior. Quanto à psiché, alma, não se pretende indicar a alma no sentido grego, já que nunca é distinta do conceito de sôma, pois indica a vida do homem. Pnêuma, espírito, raramente indica a parte intelectual humana, pois a tradição da Septuaginta já o tinha consagrado no sentido de sopro, alento etc. Noûs,intelecto, espírito, não tem equivalente em hebraico e é certamente graças à sua formação helenística que Paulo o adota, e tem o sentido de juízo, inteligência, decisão. É alheio ao sobrenatural, enquanto que o termo anterior guarda essa característica. Uma passagem serve de modo especial para caracterizar a condição humana de um ponto de vista que hoje poderíamos chamar de psicológico. É a passagem de Rm 7, 14-25:
Sabemos que a Lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado. Realmente não consigo entender o que faço; pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto. Ora se faço o que não quero reconheço que a Lei é boa. Na realidade não sou mais eu que pratico a ação, mas o pecado que habita em mim. Eu sei que o bem não mora em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu alcance, não, porém o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero. Ora se faço o que não quero, já não sou eu que ajo, e sim o pecado que habita em mim.
Verifico, pois, esta lei: quando quero fazer o bem, é o mal que se me apresenta. Comprazo-me na lei de Deus segundo o homem interior; mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros.
Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso. Assim, pois, sou eu mesmo que pela razão sirvo à lei de Deus e pela carne à lei do pecado.
O pecado, hamartía, recebe uma elaboração completa em Paulo. Em poucas palavras, o que não procede da fé como princípio de ação é pecado: Rm 14, 23. Estes são elementos de tanto da ética cristã como da mais original antropologia filosófica desenvolvida pelos Padres nos primeiros séculos do Cristianismo e, mais tarde, por via mais indireta, num caso e outro, na tradição escolástica.
No que se refere a Deus, a assim chamada prova cosmológica, que está unida à prova moral da existência de Deus em Romanos 2, aparece especialmente nos versículos 14-15: “Quando então os gentios, não tendo lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo lei, para si mesmos são Lei; eles mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho sua consciência e seus pensamentos”.
O termo grego, eleuthería,liberdade, tem, na tradição grega, sentido distinto do que assume no pensamento paulino. Enquanto que, na tradição grega, o conceito se relaciona com a razão, no cristianismo nascente, a liberdade está ancorada na ação de Deus sobre o homem. Une-se a este, o termo sophía, sabedoria. Trata-se aqui da sabedoria prática, termo próximo ao conceito de santidade. Paulo confronta a sabedoria mundana com a sabedoria cristã. A propósito, eis a passagem de 1Cor 3, 18-19: “ninguém se iluda: se alguém dentre vós julga ser sábio aos olhos deste mundo, torne-se louco para ser sábio, pois a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus”. E qual é a sabedoria de Deus? Esta é a parte central e inspiradora de toda e qualquer filosofia cristã que se desenvolveu no Ocidente. Trata-se do esquema que se segue, presente em Empédocles, parcialmente em Platão e Aristóteles, e retomado pelos epicuristas e estoicos, para explicar a origem do prazer: a kénosis, esvaziamento, privação, de um dos elementos vitais do corpo conduz a um desequilíbrio e o sofrido sentido de falta, endéia, o que gera a epithymía, desejo, e o impulso para o preenchimento, para a plenitude a anaplérosis. Ao se atingir este estado, chega-se ao prazer, pois se alcança o equilíbrio do corpo.
É certo que não se pode fazer a passagem imediata desse esquema helênico para o famoso hino de Filipenses: “Ele, estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas se despojou, tomando a condição de escravo… Por isso Deus soberanamente o elevou…” O termo kénosis é, como se viu, de grande tradição filosófica. No esquema seguido por São Paulo, predomina a estrutura do profeta Isaías, do servo que é exaltado, glorificado por Deus. Por outro lado, a riqueza semântica da expressão, a profundidade do que ela significa dentro da mensagem cristã, compagina-se com tudo o que Paulo prega, especialmente em relação à sabedoria-loucura dos cristãos. Do ponto de vista metafísico, constitui-se a ontocristologia.
Se, por ontoteologia, se entende, na tradição filosófica mais recente, a metafísica que pensa os entes a partir do ser de Deus, ou ainda, que pensa o próprio Ser como Deus, esta não é a ontologia desenvolvida por filósofos cristãos. A filosofia cristã é ontocristologia, porque, embora a nome de Deus seja o Próprio Ser Subsistente, não se trata da aplicação de um conceito filosófico a Deus. Aliás, o nome de Deus é impronunciável e, a fortiori, dele não se pode ter conceito algum. Por isso mesmo, essas noções pertencem mais à filosofia, à cultura cristã do que à própria revelação bíblica. Para a tradição filosófica cristã, é sempre Jesus Cristo o referencial de suas meditações. É ele a sabedoria cristã. Não é, pois, a partir do conceito abstrato de Deus que se concebe a filosofia que, eventualmente, poderia conduzir ao cristianismo. O contrário é que é a verdade: o cristão encontrou na filosofia o lugar mais sublime entre as coisas humanas para inserir a figura de Jesus Cristo, através dos conceitos e métodos que lhe são apropriados.
A partir da doutrina de Paulo, as possibilidades e as características de uma nova metafísica devem ser desenvolvidas a partir do tema da aventura humana da perda. Nesta ordem de coisas, a abstração é entendida como ascese. O processo abstrativo é processo de separação, é o primeiro processo de humanização do homem. É o caminho da kénosis. O esvaziamento do humano é o esvaziamento do totalizante, da razão instrumental. É tendência para o intuitivo, que se dá na transcendência do outro, do desvelamento da transcendência. A kénosis é o conteúdo último da moral e do homem de valor, porque é atitude do amor.
Clemente de Alexandria, seguido por Agostinho e pela patrística em geral, segue a filosofia da kénosis. A tese principal de Clemente faz apelo à cultura clássica, ao defender que à filosofia antiga coube a tarefa pedagógica de encaminhar os gentios para Cristo, como a Lei servira para conduzir os judeus a ele:
Vem, pois, ó insensato, e não mais com o tirso na mão, nem coroado de hera! Larga tua mitra, deixa tua pele de cabra e retoma a razão! Eu te mostrarei o Logos e os mistérios do Logos, valendo-me de tuas próprias imagens[5].
Enfim, ao tratar do conhecimento humano, do homem e de sua liberdade, de Deus e sua natureza, Paulo introduziu conceitos fundamentais na cultura ocidental que, por via direta ou indireta, serão referências constantes da filosofia até o tempo presente.
Autor
Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira, presidente do Centro Dom Vital
Confira outros artigos publicados em nosso site.
Referência Bibliográfica
- ANÔNIMO. Epistolario tra Seneca e San Paolo. Milão: Rusconi, 1995.
- CABALLERO, José A. Pensamiento griego y pensamiento bíblico. Alpha Omega. Roma: 3, set-dez., 2007, p. 399-422.
- DATTLER, Frederico. Vida e Doutrina do Apóstolo São Paulo. Petrópolis: Vozes, 1976.
- LÄPPLE, Alfred. Bíblia: interpretação atualizada e catequese. V. 3. São Paulo: Paulinas, 1978.
- FEINER, Johanes; LOEHRER, Magnus. Mysterium Salutis I/4. Petrópolis: Vozes, 1978.
- GOMES, Cirilo Folch. Antologia dos Santos Padres. São Paulo: Paulinas, 1976.
- PETERS, F. E. Termos filosóficos gregos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.
- SERTILLANGES, A.-D. Le Christianisme et les philosophes I. Paris: Aubier, s/d.
- SPINOZA, B. Spinoza Opera.GEBHARDT, Carl (org.). Heidelberg: Carl Winter, 1972.
- ____. Tratado Teológico-Político. Lisboa: Casa da Moeda, 1988.
- [1] SPINOZA, Baruch. Tractatus teologico-politicus, XI, 151, 15-17, referindo-se a 1Cor 14, 6.
- [2] ANÔNIMO. Epistolario tra Seneca e San Paolo. Milão: Rusconi, 1995. Como se sabe, é uma obra espúria do século IV, cujo autor, anônimo, na intenção de valorizar as Escrituras Sagradas para um público letrado, confeccionou catorze cartas que atribuiu aos dois grandes contemporâneos.
- [3] SERTILLANGES, A.-D. Le Christianisme et les philosophes I, p. 177 ss.
- [4] DATTLER, Frederico. Vida e Doutrina do Apóstolo São Paulo. Petrópolis: Vozes, 1976, p. 240.
- [5] CLEMENTE DE ALEXANDRIA. Protréptico, na tradução de Cirilo Folch GOMES. Antologia dos Santos Padres, n. 129.