A Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Alceu Amoroso Lima

Leandro Garcia Rodrigues[1]

Diretor do Centro Dom Vital

Nos últimos anos, temos percebido uma enorme quantidade de publicações e pesquisas envolvendo a Epistolografia, quase nos forçando a pensar numa nova área dentro dos Estudos Literários: a Crítica Epistolográfica. Nomes ou categorias à parte, a verdade é que os estudos sobre correspondências vêm ganhando forte e decisivo fôlego no mundo acadêmico brasileiro. Neste sentido, trago à lume a correspondência trocada por Carlos Drummond de Andrade e Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde. Trata-se de um importante e sintomático epistolário produzido ao longo de cinquenta e quatro anos, entre 1929 e 1983, ano da morte de Alceu.

O início desta amizade não foi de forma pessoal, ao vivo, frente à frente um do outro, mas à distância, conhecendo-se ambos apenas pela imprensa, pela publicação de obras e pela interseção de amigos em comum, especialmente Mário de Andrade, correspondente assíduo tanto de Drummond quanto de Alceu. Tal fato – a amizade puramente epistolar – era comum nesta geração, pouco se encontravam mas, na distância física, mantinham verdadeiras redes de contato e convivência. Desta forma, a carta era uma espécie de “ágora” de debates e formulação de pensamentos, estilos e opiniões, exteriorização de paixões, desabafo de sentimentos e até mesmo construção de certas ficções. É o próprio Alceu que reconhece e até reclama – a Drummond – do seu imenso apreço pelas cartas:

Mas V. é um mau correspondente. Não envia cartas. Tenho de resignar-me a continuar no escuro. Eu sou o contrário. Sem ter tempo de escrever, escrevo demais e escrevo pelo prazer de receber a resposta. E pelo amor à correspondência, essa forma literária que hoje em dia me satisfaz. (Carta a Drummond, 1/2/1929)

Aqui se revela um forte diferencial daquela geração de Alceu e Drummond: a correspondência como oportunidade ímpar para construção de conhecimentos, para formulação de ideias e teorias, como tão bem ficou demonstrado na organização da correspondência entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira, feita por Marcos Antônio Moraes e publicada em 2000, pela Edusp. Tal opinião, também é defendida por Júlio Castañon Guimarães, para quem

A carta perde a formalidade que se encontra até essa época; torna-se efetivamente troca de ideias, informações, como substituto efetivo da conversa. Sem dúvida, esta modificação propicia um maior desembaraço, de modo que, para além das questões literárias, a carta será também espaço de manifestações pessoais, de informações privadas de pessoas envolvidas na vida literária. (Guimarães, 2004, p.24)

Desta forma, esta correspondência também serve para iluminar e mostrar as particularidades do próprio movimento modernista brasileiro, através dos filtros de Alceu e Drummond, elucidando suas lacunas, conquistas, limitações, autores, obras, avanços e retrocessos. São “cartas pensadas”, usando a expressão de Mário de Andrade. E digo mais: são cartas semânticas e cheias de múltiplas possibilidades interpretativas e agentes de transformação do cânone da nossa própria história literária. Entre o palco e os bastidores, a correspondência vai preenchendo diferentes lacunas da nossa vida literária, possibilitando a compreensão de estilos e intenções, obras e os caminhos de criação, bem como ajuda na decifração de inúmeras problemáticas biográficas e pessoais que envolvem o universo pessoal dos artistas. Neste sentido, um aspecto fundamental na correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Alceu Amoroso Lima diz respeito à questão religiosa, assunto este tão forte e profundamente ligado à vida de ambos, ora por afirmação (Alceu), ora por negação e/ou ceticismo (Drummond). É o que passo a analisar.

Os (des)encontros com Deus

A chamada questão religiosa foi bem complexa nas primeiras décadas modernistas, tendo as mais diferentes ressonâncias na vida e na obra de determinados escritores, bem como nas políticas públicas, especialmente na educação e na cultura. Escritores como Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Mário de Andrade, Alcântara Machado e próprio Drummond foram, de uma forma ou de outra, intersectados pelos debates e pelas dúvidas de natureza essencialmente ontológico-religiosa. Para alguns, Deus passou de hipótese à certeza – caso de Alceu. Para outros – incluindo Drummond – Deus deixou de ser uma verdade e migrou para a possibilidade (em alguns momentos beirando a negação em si).

Alceu e Drummond acompanharam a reorganização da Igreja Católica no Brasil, no sentido ideológico, pastoral e doutrinal, movimento este conhecido – genericamente – como Ação Católica Brasileira. Com a proclamação da República e a consequente separação entre Igreja e Estado, o Catolicismo brasileiro perdeu relativas forças de atuação, especialmente nos âmbitos cultural e político.

Neste sentido, foi durante a década de 20, mais precisamente no governo do presidente Arthur Bernardes (1922-1926), que teve início a reorganização da estrutura católica brasileira através da Ação Católica. Para tal, foi fundamental o papel exercido pelo então arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme (1882-1942). que arregimentou a intelectualidade católica a mover-se, a expressar-se, deu apoio incondicional a Jackson de Figueiredo, exemplo de escritor comprometido com a doutrina da Igreja.

A partir de Arthur Bernardes, outros presidentes também solicitaram a colaboração da Igreja para conter a onda revolucionária que se espalhava em diversos setores da sociedade, principalmente na Educação. Como exemplo deste clima de reconciliação e ajuda mútua entre a Igreja e o Estado, recorro à correspondência que Francisco Campos manteve com Getúlio Vargas, nesta carta de 18/4/1931, explicando-lhe os detalhes técnicos sobre o ensino religioso católico nas escolas públicas, bem como advertindo-o positivamente acerca da importância de se “agradar” a Igreja:

Meu caro presidente.

Afetuosa visita.

Envio-lhe o decreto junto, que submeto ao seu exame e aprovação. Como verá, o decreto não estabelece a obrigatoriedade do ensino religioso, que será facultativo para os alunos, na conformidade da vontade dos pais ou tutores. […] O decreto institui, portanto, o ensino religioso facultativo, não fazendo violência à consciência de ninguém, nem violando, assim, o princípio de neutralidade do Estado em matéria de crenças religiosas. […] Neste instante de tamanhas dificuldades, em que é absolutamente indispensável recorrer ao concurso de todas as forças materiais e morais, o decreto, se aprovado por V. Excia., determinará a mobilização de toda a Igreja Católica ao lado do governo, empenhando as forças católicas, de modo manifesto e declarado, toda a sua valiosa e incomparável influência no sentido de apoiar o governo, pondo ao serviço deste um movimento de opinião de caráter absolutamente nacional. […] Pode estar certo de que a Igreja Católica saberá agradecer a V. Excia. esse ato, que não representa para ninguém limitação à liberdade, antes uma importante garantia à liberdade de consciência e de crenças religiosas. (apud Schwartzman, 1984, pp. 292-293)

Neste momento, presenciava-se o nascimento de um “ideal militante de Catolicismo”, no qual as palavras de ordem eram as defesas apologéticas à religião e à doutrina da Igreja. Nesta perspectiva, um evento cultural foi fundamental na divulgação da intelectualidade católica: a criação da revista A Ordem, em 1921. Na sua correspondência com Drummond, Alceu fez diversos pedidos de contribuição intelectual em favor de A Ordem, como podemos verificar nesta passagem, em 1 de fevereiro de 1929:

A Ordem virá, a meu ver e segundo o meu desejo, ante sempre esse gosto pela Verdade, tão pouco dos nossos sabidos. Oxalá possa um dia v. escrever nela, dentro do seu espírito, reconciliado com aquilo que parecia estar afastado.

Ao que tudo indica, Drummond foi uma espécie de “garoto propaganda” desta revista em terras mineiras, divulgando-a e colhendo assinaturas, de forma entusiástica, como se percebe nesta carta a Alceu, em 1 de março de 1929:

Como vai A Ordem? O Casasanta, com quem trabalho, tem feito propaganda eficiente da revista, e creio que o Abgar Renault também tem se interessado. Eu lhe mando mais um endereço: Joaquim Bento de Souza, Secretaria da Agricultura, Belo Horizonte. Deseja ser assinante.

Tais passagens comprovam a intensa rede de contribuição intelectual que se estabeleceu nesta correspondência. Daí a importância desta reorganização da cultura católica brasileira, pois possibilitou a dinamização de parte da nossa vida literária com lançamentos, prêmios, conferências e publicações.

Na mesma linha de A Ordem, outra forma eficaz para este intercâmbio formativo de ideias foi a criação de alguns centros culturais. O melhor exemplo foi o Centro Dom Vital (CDV), fundado no Rio de Janeiro, em 1922. Jackson presidiu-o por seis anos, até a sua morte, em 1928, quando Alceu Amoroso Lima – por convite do mesmo Cardeal – assumiu a sua presidência e deu um novo dinamismo ao mesmo, especialmente na sua dimensão cultural.

O CDV participou ativamente da vida cultural, religiosa e política brasileira nas décadas de 20, 30 e 40, influenciando ativamente no lançamento de alguns escritores como Cornélio Penna, Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt, Jorge de Lima, José Américo de Almeida e outros. Neste afã, Drummond não passou incólume pela história do CDV, como se observa neste convite feito por Alceu, em 26 de setembro de 1947: “Estou projetando pedir-lhe uma conferência sobre Poesia para o Centro D. Vital. Vá pensando!”.

Drummond encontrou em Alceu um interlocutor à altura das suas dúvidas existenciais, dos seus questionamentos em relação a Deus e à fé. Já Alceu, recentemente convertido quando do início desta correspondência, encontrou em Drummond a possibilidade de uma “conversão de peso”, isto é, Alceu “injetaria” em Drummond aquilo que nele (Alceu) sobrava – a fé. O que faltava no poeta seria preenchido pelo que abundava no crítico, numa clara relação entre mestre e discípulo. No caso específico de Drummond, já na primeira carta, no estabelecimento da correspondência, em 24 de janeiro de 1929, o poeta itabirano fez uma sintomática revelação:

Passo agora falar da Ordem, que me impressionou muito, embora eu não seja (ou talvez por isso mesmo) um bom católico. Sou dos maus, dos piores católicos que há por aí. Talvez seja uma crise da mocidade, não sei, entretanto sinto pouca disposição para crer, e um contato extremamente doloroso que tive com os jesuítas me afastou ainda mais da religião. Fiz mal, talvez, em confundir a religião com os seus ministros… De qualquer maneira, admiro e quase que invejo os que como V. deram uma solução definitiva a esse problema religioso que nós carregamos como uma ferida. Quem sabe se ainda não chegarei até lá? Por enquanto vejo tudo escuro dentro de mim, e a vida sem compromissos me solicita terrivelmente.

“Sinto pouca disposição para crer”, esta é uma afirmação deveras interessante que marca não apenas a pessoa de Drummond, mas de uma boa parte da sua geração, fortemente marcada pelos ideais do Positivismo e do Cientificismo, ideologias estas vindas da Europa e que se impregnavam na mentalidade culta brasileira com uma força realmente considerável.

Daí a dúvida se tal fenômeno não seria “uma crise da mocidade”, um momento complicado marcado pela tensão, pelo entre-lugar da crença ou não em Deus, por isso Drummond afirmar que “admiro e quase que invejo os que como V. deram uma solução definitiva a esse problema religioso que nós carregamos como uma ferida.” E ferida é sinal de dor, inflamação, depuração. Ainda em relação à imagem problemática da ferida, Alceu esclarece, em 1 de fevereiro de 1929:

V. fala na ferida que levam os que como v. não creem ou não sabem que creem. Essa ferida é já um pouco de amor à Fé. Os que nada esperam dela, nem ao menos tem a noção da ferida, a suspeição de uma ausência, a intuição de que há qualquer coisa além do mundo que nos cerca. E no mais, a Fé é também uma ferida. É mesmo a maior das feridas humanas. Pois bem, a Fé é uma ferida quase crônica. […] A Fé não se incute, conquista-se. E como é um alargamento e não uma restrição, como é uma plenitude, só mesmo o caminho interior pode levar a ela ou tornar a ela.

Alceu analisa o estado de Drummond pela ótica de um recém convertido, ainda empolgado com o Mistério, inebriado e absorto na mística, por isso sente nesta “ferida” drummondiana a presença silenciosa e ruminante da fé: a ferida como presença calada de Deus e, paradoxalmente, um silêncio que arrebenta em questionamentos e inquietações, um estranhamento consigo mesmo e com a sua própria história pessoal. Para Alceu, a fé é busca incessante de um porquê, de uma razão, de um para quê buscar a Deus, ou seja, um movimento constante e tenso, às vezes desnorteador, nunca pacífico e calmo, como muitos pensam. Como era de se esperar, Alceu não convenceu Drummond com tais propostas, tanto que o poeta retrucou, em 1 de março de 1929, com esta espécie de carta-desabafo:

Caro Tristão

Sou-lhe muito grato pela sua bela e generosa carta, que guardo com carinho entre os meus papéis. Só um trecho dela é que me perturbou: aquele em que você dá a entender que não encontrou a paz na religião, porque a paz não é deste mundo. Mas então não sei o que se deva procurar na religião. Se ela não é uma paz máxima e consoladora, uma dissolução de todos os ímpetos, revoltas, inquietações, não seria preferível continuar do lado de cá, sem nenhuma certeza superior e sem nenhuma esperança?

O problema é que o “lado de cá” é por natureza fragmentado, rachado, incerto, cético, e tais estados não preenchem o costumeiro vazio próprio da condição humana, a nossa busca pelo eterno, pelo infinito, por aquilo que fica e dura. É justamente este entre-lugar, profundamente marcado pela tensão que corroi e traz incerteza e ceticismo, possibilidades e não certezas, desconfianças e o sentimento inquieto e incômodo de que algo a mais existe, esta espécie de metafísica perturbadora e tentadora do eu lírico.

Para o Alceu ainda agnóstico, a felicidade era encontrada nas conquistas do engenho humano, forte, com aquele destemor incentivado pelas diversas teorias cientificistas que pulularam na transição dos séculos XIX-XX, das quais ele sempre se viu como um fruto ideológico. Para o Alceu convertido, as forças do engenho humano continuavam com o seu devido valor, porém acrescido de uma mística envolvente que lhe dava transcendência, ou seja, o existir só tinha razão se fosse direcionado a Deus. Como a correspondência demonstra, Drummond não concordou com esta equação, tanto que respondeu, em outubro do mesmo ano:

Eu sou um pobre homem sem orientação e sem coragem para optar, e se reconheço os meus erros não me animo a dar-lhes combate. Se eu lhe contasse a minha vida moral!… Sou fraco, fraquíssimo. Todos os dias as mesmas quedas silenciosas e um desgosto profundo, imenso de viver, com o medo de morrer que é o mais triste de todos os medos.

Parece mesmo que a desorientação e a falta de opção perseguiram o poeta ao longo da sua criação. Mas não são estes bons ingredientes para a sintomática condição “gauche” tão cara a Carlos Drummond de Andrade? Creio que sim, e sua obra o demonstra a cada instante, seja na temática da morte, do suicídio, do ceticismo, do amor impossível, do não reconhecimento do mundo, do estranhamento do eu no seu meio de convívio.

Outros fragmentos ajudariam a compreender um pouco mais esta dimensão tão aguda e complexa na vida e na obra de muitos artistas – o problema religioso. Mas as cartas virão para isso, para iluminar e problematizar um pouco mais este debate, lançando luz e provocando novos paradigmas reflexivos e exegéticos em relação ao pensamento e à obra de Alceu Amoroso Lima e Carlos Drummond de Andrade. Entretanto, achei melhor organizar esta correspondência em três momentos distintos, porém interligados, no sentido de melhorar nossa compreensão acerca desta considerável obra epistolográfica.

Três Fases – Três Caminhos

A correspondência que ora apresentamos é um conjunto de 131 textos (cartas, telegramas, cartões de visita, postais e bilhetes) de natureza variada e que precisa de uma normatização organizacional no sentido de valorizar este mesmo diálogo epistolar. Assim sendo, proponho a divisão deste epistolário em três fases distintas, porém interligadas e dependentes uma da outra:

1) Primeira fase: de 1929 a 1934

Trata-se do momento de estabelecimento da correspondência, em janeiro de 1929, durando até a entrada de Drummond no governo de Getúlio Vargas, em 1934, quando foi nomeado chefe de gabinete de Gustavo Capanema, no Ministério da Educação.

A iniciativa de se criar este debate epistolar foi de Drummond, já que enviou a primeira carta, em 24 de janeiro de 1929. Este período produziu as cartas mais “pesadas”, mais intelectualizadas, debatedoras, que denunciavam um mútuo movimento de persuasão ideológica entre ambos. É o momento marcado pelas tensões provocadas pelo “problema religioso”, sempre aludido por Drummond para tentar entender o seu ceticismo em relação à religião e à fé. É quando encontramos a sintomática carta escrita por Drummond, em 1 de junho de 1931, narrando a sua vontade – sem coragem – de ter se suicidado:

O que me preocupa, afinal de contas, é a solução de uns certos problemas freudianos que enchem a minha vida e dos quais eu tenho que me libertar, sob pena de suicídio (em que tenho pensado inúmeras vezes, mas sem a necessária coragem) ou de loucura, para a qual não é difícil encontrar exemplos em minhas origens.

São esses “problemas freudianos” que pesam nesta primeira fase da correspondência entre Alceu e Drummond, não apenas freudianos, mas também religiosos e ontológicos. As cartas desta fase do epistolário testemunham importantes aspectos biográficos sobre a pessoa de Carlos Drummond de Andrade, aspectos estes ainda pouco conhecidos do grande público. O que vemos é um Drummond sintomaticamente fragmentado pelas vicissitudes da própria vida, pelas inconstâncias da carreira profissional, pelas escolhas realizadas – tudo isso comentado e debatido com Alceu.

Este momento termina em 1934, quando Drummond se transfere para o Rio de Janeiro e assume a chefia do gabinete de Gustavo Capanema, exercendo uma importante e ainda pouco estudada ação cultural entre artistas e intelectuais em pleno Estado Novo, no sentido de intermediar com Capanema os mais diferentes anseios e projetos de boa parte da classe artística brasileira. É o próximo momento deste epistolário.

2) Segunda Fase: de 1934 a 1945

Este período coincide com a mudança e chegada de Drummond ao Rio de Janeiro, assumindo a assessoria de Capanema no Ministério da Educação. Foram onze anos à frente deste importante cargo de projeção nacional que alçou o nome de Drummond, tornando-o ainda mais conhecido nos diferentes setores da época. Faz-se mister informar que Drummond não exerceu apenas a chefia do gabinete de Capanema, mas também foi por este nomeado a outros cargos de igual relevância, como a direção do Departamento Nacional de Educação. Enquanto esteve neste cargo, Drummond presidiu o Conselho Nacional de Educação, órgão do qual Alceu Amoroso Lima fez parte durante vários mandatos, aproximando-o ainda mais do poeta.

Neste período, Drummond não apenas adentra mais no serviço público em nível federal, como também exerce um importante intercâmbio entre artistas e intelectuais com o Ministério da Educação. É neste momento e sob esta natureza que se desenvolve a segunda fase da correspondência entre Drummond e Alceu, uma prática epistolar mais burocrática e marcada por contatos rápidos, telegráficos e objetivos, todos visando empregos, funções e problemas legais do sistema federal de ensino via Ministério da Educação.

Alceu via em Drummond a “ponte” certa para ter acesso direto a Capanema, numa cumplicidade de grandes amigos, com palavras objetivas. Por seu lado, Drummond também usava a mesma objetividade nas suas respostas e/ou comunicados, como neste bilhete enviado a Alceu:

Rio, 30-10-36

Meu caro Alceu

Por meu intermédio, você pediu há dias ao Ministro uma palavra de interesse em favor do sr. Alberto Cerqueira, candidato a protocolista do Tesouro. Essa palavra foi dada, numa carta ao Ministro da Fazenda. É o que tinha a comunicar-lhe, com um abraço cordial, o

Carlos

Ao levantarmos este acervo em específico, percebemos uma espécie de rede de contatos e pedidos de favores exercidos por Alceu Amoroso Lima sobre Carlos Drummond de Andrade. Eram pedidos os mais diversos, mas todos relacionados a problemas burocráticos do Ministério: dúvidas quanto à legislação educacional brasileira, pedidos de amigos para transferências entre instituições, nomeações, exonerações, concursos públicos etc.

Tal fato se comprova ao pesquisarmos o conteúdo do arquivo de cartas de Alceu. São centenas de pastas de pessoas desconhecidas que escreviam a Alceu dos cantos mais recônditos do Brasil, especialmente das regiões Sul e Nordeste, pedindo a ajuda e a intervenção do mesmo junto ao Ministério da Educação, especialmente no sentido de solicitar remanejamento de cargo ou simplesmente pedindo algum tipo de emprego público – via nomeação – nos diversos setores ligados ao Ministério da Educação, como se percebe neste bilhete de Drummond a Alceu:

Caro Alceu:

O caso do prof. Augusto Lopes Pontes está na Comissão de Eficiência e, voltando ao Gabinete, será objeto dos meus melhores cuidados.

Um abraço, muito cordial, do seu

Carlos Drummond

10-2-37

Insisto em afirmar a importância de tais relatos e situações para compreendermos a noção de vida literária no nosso Modernismo que, certamente, ultrapassou as fronteiras das relações e eventos puramente culturais, atingindo as relações de amizade e/ou profissionais as mais diversas, fornecendo-nos dados que ajudam no preenchimento deste enorme quebra cabeças biográfico-cultural da modernidade brasileira.

Com esta rápida panorâmica, concluímos as ideias acerca deste segundo momento epistolar entre Alceu e Drummond, passando para a terceira e última fase, que marca a maturidade pessoal e profissional de ambos e o fim desta correspondência.

3) Terceira Fase: de 1945 a 1982

Este momento, o mais longo da correspondência, começa com o fim do Estado Novo e a consequente saída de Drummond do gabinete Capanema, uma vez que este foi substituído por Raul Leitão da Cunha, no rápido governo de José Linhares.

Esta etapa é conclusiva sob vários aspectos, especialmente por testemunhar a consolidação artístico-profissional de ambos. Além destas perspectivas, percebemos um amadurecimento mútuo que se traduz pela imensa amizade e profundo reconhecimento do valor humano entre ambos, como afirmado nesta carta que o poeta enviou ao crítico:

Rio, 8 de setembro de 1945.

Meu caro Alceu:

Aqui está, com dedicatória amiga e para mim tão grata, a “Estética Literária”, livro tão rico de ideias como próprio a suscitar outras, e em que é fácil verificar a madura experiência do crítico depois de um alongado convívio com os livros. Embora discordando de muitas das suas afirmações, não posso deixar de admirar o conjunto do seu livro, que representa algo de novo em nossa mofina e instintiva arte literária. Você deu aos novos um instrumento de trabalho e meditação. Escreveu uma obra indispensável. Com o meu afetuoso muito obrigado, também um abraço do

Carlos Drummond

Salienta-se o fato de que a forte amizade não impede a observação crítica de Drummond, ao contrário, possibilita-a. Ou seja, as diferenças e discordâncias não impedem a livre manifestação das opiniões e impressões que um sentia pelo outro, como neste fragmento de Alceu:

Rio – 20 – Março -1946

Meu caro Carlos

Não preciso dizer-lhe a alegria que me deu sua carta. Meu livro encontrou em você o que eu mais desejaria. Um julgamento de valor moral, de uma alma que eu respeito, não apenas como um grande poeta, um dos mais autênticos em toda a nossa história literária, mas como um grande coração e um caráter intangível. Todas as nossas divergências são acidentais em face de tal fraternidade. […]

O mesmo interesse também se dava através da organização de “obras completas”, como aquela que a Editora Aguilar fez de Alceu e que tanto impressionou Drummond:

Rio, 6 de julho de 1966.

Meu caro Alceu:

Gratíssimo pelo bom presente dos “Estudos Literários”. Que livro! Foi abri-lo e folheá-lo, e logo me apareceram, vivos, os dias, as ideias, a agitação, entre criadora e destrutiva, da década de 20, em meio a qual havia um ponto de referência, uma claridade: você e sua crítica. […] Este volume Aguilar é precioso como retrato de um escritor que deu à crítica de livros e de ideias, entre nós, categoria universal. O abraço agradecido e fraterno do seu

Carlos Drummond de Andrade

Tudo este movimento de exposição emotiva e reconhecimento mútuo é próprio deste momento final da correspondência. No sentido amplo, a amizade é também geradora de histórias e de biografias, é parte integrante deste importante e sintomático sentimento que une as pessoas, que provoca convívios e relações, que constrói legados e uma espécie de patrimônio imaterial que o tempo apenas alimenta e enriquece.

As cartas de Carlos Drummond de Andrade

Os originais que Drummond enviou a Alceu se encontram – todos – no arquivo do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade (CAALL), em Petrópolis (RJ). Neste local, temos toda a correspondência passiva de Alceu, mais de trinta mil cartas que o crítico recebeu ao longo dos seus quase noventa anos. Todo este acervo está dividido em pastas, com os nomes dos respectivos remetentes. Uma delas é a de Carlos Drummond de Andrade.

A primeira tarefa foi dividir tais originais por décadas – de 20 a 80 – no sentido de organizar cronologicamente os mesmos. Feita esta pequena arrumação, o passo seguinte foi fazer a transcrição das mesmas, momento muito meticuloso que requer responsabilidade para com a fonte primária textual.

A caligrafia de Drummond é boa de se compreender, especialmente no final da vida (paradoxo), quando se mostra ainda mais legível do que na época da juventude. É notório também o gosto de Drummond em escrever em pequenos cartões de visita, que enviou aos montes a Alceu, numa clara referência à comunicação telegráfica própria dos locais de serviço e do dia a dia corrido de funcionário público de alto escalão.

Após este momento de transcrição dos originais, seguiu-se a produção das notas de rodapé no sentido de enriquecer a leitura dos mesmos. Para tal, optei em utilizar material crítico de alta qualidade produzida sobre a obra de Drummond, produção esta muito numerosa e que auxilia na compreensão dos meandros poéticos deste poeta. Além deste recurso, lancei mão sobre dois importantes epistolários já publicados de autoria drummondiana: sua correspondência com Mário de Andrade e com Cyro dos Anjos. Nestas, procurei utilizar fragmentos que estivessem, de uma forma ou outra, interligados tematicamente com as cartas enviadas a Alceu, fazendo uma espécie de cruzamento sintomático que contextualiza a própria carta analisada.

As cartas de Alceu Amoroso Lima

As missivas originais que Alceu enviou a Drummond estão todas depositadas no Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB-AMLB), no Rio de Janeiro. As cartas de Alceu estão todas catalogadas numa pasta-fichário que recebe o nome deste.

Após a obtenção das devidas cópias, iniciei o trabalho de transcrição das mesmas e posso afirmar, categoricamente, que foi o momento mais difícil e complicado desta pesquisa, dada a imensa dificuldade que é decifrar a caligrafia de Alceu, já muito conhecida pela quase impossibilidade de decifração. O maior problema é que Alceu não segue uma padronização caligráfica, varia muito e constantemente na escrita das palavras e nos formatos de letras utilizados.

Feita tal transcrição, segui à produção das notas explicativas no rodapé. Ao contrário do ocorrido em relação às cartas enviadas por Drummond quando, além de intensa pesquisa bibliográfica, também consultei amigos e especialistas em sua obra, no caso das cartas escritas por Alceu usei de investigação em livros e outras pesquisas por mim realizadas, principalmente em seu arquivo pessoal no CAALL. Tais consultas foram realizadas no sentido de localizar alguns outros remetentes a partir dos quais cruzamos informações, fatos, datas, temáticas e quaisquer outras possibilidades intertextuais, sempre no sentido de enriquecer a interpretação destas mesmas cartas.

Concluindo

Longe de querer oferecer uma “conclusão”, já que esta será feita pelo leitor ao longo da análise destas cartas, quero propor algumas ideias que julgo essenciais quanto às 131 cartas trocadas entre Alceu Amoroso Lima e Carlos Drummond de Andrade.

A correspondência trocada entre Alceu e Drummond é atravessada por questões religiosas, biográficas, humanas e culturais, aspectos estes que tornam ainda mais intrigante a noção de vida literária, conceito essencialmente aberto e sempre esperando novas formulações e propostas exegéticas.

Foram dois missivistas de peso: um grande escritor e um grande crítico literário. Duas personalidades essenciais para se compreender a cultura literária brasileira do século XX, marcada pela diversidade ideológica, temática e estilística. Dois intelectuais de pensamento e práxis inteiramente diferentes que refletem a própria heterogeneidade do nosso movimento modernista, marcado por sintomáticas rachaduras e fragmentações.

Este epistolário que está para vir à lume já chegará com uma espécie de “missão”, e esta se configura em propor novas abordagens e considerações acerca das pessoas e das obras de Alceu Amoroso Lima e Carlos Drummond de Andrade, contribuindo para uma necessária e sempre bem vinda (re)avaliação do cânone literário brasileiro.

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[1] Doutor e Pós-doutor em Letras pela PUC-Rio. Contato pessoal: prof.leandrogarcia@hotmail.co. Texto publicado na Revista Brasileira, publicação da Academia Brasileira de Letras, no.78, junho de 2014.

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