Leandro Garcia Rodrigues[1]
Diretor do Centro Dom Vital
Neste ano de 2012, comemoramos nove décadas da explosiva Semana de Arte Moderna, ocorrida em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Neste sentido, algumas revisões históricas e culturais têm sido feitas, levantando novidades e problemas sobre aquele famoso evento cultural. Uma questão ainda pouco explorada diz respeito à participação do Rio de Janeiro, então capital federal, no bate-boca modernista. Podemos dizer que o Rio ignorou – ou mesmo desdenhou – aquela que também é conhecida como Semana Futurista. Tal fato pode parecer estranho, mas é plenamente compreensível.
Primeiramente, falemos dos eternos clichês que dizem respeito a uma certa rivalidade entre Rio e São Paulo, o que ainda hoje provocam debates acalorados e sem sentido. Foi o movimento Verde-amarelo, braço conservador do modernismo paulista pós Semana de 22 que, de forma mais contundente e organizada, desqualificou intelectualmente o Rio de Janeiro. Através de artigos, charges, caricaturas, editoriais e entrevistas dos seus principais mentores – Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado – temas como a malandragem carioca e uma certa “ausência de seriedade” do Rio de Janeiro eram sempre colocados em discussão (ou em deboche). Mas não apenas os verdeamarelistas, outros intelectuais e artistas das mais diferentes linhas ideológicas também alimentaram esta disputa. Numa carta a Manuel Bandeira, em 18 de abril de 1924, Mário de Andrade percebeu tal situação e afirmou: “O que são as vaidades, meu Deus! Essa gente do Rio nunca perdoará a São Paulo ter tocado o sino. Não falo de você. Você já não é do Rio. Você já é como eu: do Brasil.” (MORAES, 2000, pp. 201-202). De temperamento mais conciliador, Manuel Bandeira tenta amenizar e responde, quatro dias depois, tentando dissuadir o ceticismo do autor de Macunaíma:
Não creia que haja por cá afastamento, indiferentismo pelos artistas de São Paulo. Ao contrário, desde que eles aparecem são prezados e queridos. Haja vista você, inédito e já de reputação feita aqui. O que há é uma dispersão formidável de metrópole. Não há aqui esse aconchego que permite a província. Por isso mesmo reputo São Paulo um ambiente excepcionalmente propício à cultura: perto do Rio e fora do Rio. Não pertencendo nem à Liga Metropolitana nem à Associação Paulista, estou , como pernambucano qualificado para referir… Já vivi em São Paulo onde cursei o 1º ano da Escola Politécnica (ia estudar arquitetura) e posso dizer: São Paulo é uma coisa e o Rio é uma mistura de coisas onde também a coisa paulista entra. (MORAES, 2000, p. 66)
Em contrapartida, muitos artistas cariocas viam no paulista a simbologia da seriedade exagerada, a falta de amor e humor na expressão da arte e do pensamento. Ou seja, a dicotomia estava feita e as brigas eram cheias de calor, farpas e venenos, era o Rio dionisíaco provocando a São Paulo apolínea. Naquele momento, era impossível desconectar a noção de modernidade da ideia de Nação, de construção de um projeto nacionalista que incluísse o Brasil “no concerto geral das Nações”, usando as palavras de Mário de Andrade. Entretanto, as vias para se conceber a Nação eram bem diferentes: fosse o projeto megalomaníaco de Pereira Passos em transformar o Rio numa “petit Paris” curtindo a Belle Époque dos trópicos, fosse no projeto vanguardista de revitalização capitalista e industrial de São Paulo. Ainda sobre uma suposta dificuldade carioca para as “coisas sérias”, é sintomático o que afirma Mônica Velloso no seu livro O Modernismo no Rio de Janeiro:
Afirmava-se a incapacidade do Rio para exercer o papel de capital da República. Os motivos dessa incapacidade eram variados: climáticos (os trópicos seriam prejudiciais à ordem política, intelectual e cultural), econômicos (cultura do esbanjamento e da desordem) e culturais (samba, praia e carnaval). Segundo a ideologia do grupo Verde-amarelo, o impedimento para o exercício da hegemonia nacional seria, em suma, de ordem geográfica. No litoral (Rio), ao contrário do interior (São Paulo), haveria uma profunda dispersão das energias produtivas. Em decorrência, verifica-se a falta de espírito empreendedor e de tino administrativo e a incapacidade para o comando e a liderança. (VELLOSO, 1996, p.13)
Tais argumentos são antigos e provocaram, ao longo do tempo, inúmeros preconceitos culturais e dificuldades de identidade. Sem querer alimentar qualquer revanchismo histórico entre as duas cidades, o fato é que esta disputa colaborou – dentre outros fatores – para os recíprocos silêncios entre esses dois centros culturais, especialmente no silêncio carioca em relação à Semana paulista.
A imprensa carioca dos anos 20 era bem diversificada, contando com grandes jornais de circulação diária, com destaque para O Paiz, Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil, Jornal do Commércio, Correio da Manhã, O Jornal, O Imparcial, A Manhã e outros de menor porte, mas com considerável circulação nas camadas mais populares. Isto sem dizer das revistas, especialmente O Malho, Mercúrio, Revista Ilustrada, A Cigarra (com maior circulação em São Paulo), Fon-Fon, Dom Quixote, Para Todos, Careta, A Lanterna, Tagarela e outras tantas marcadas pela efemeridade das edições.
Sintomaticamente, apenas a revista Para Todos, de aspecto bem popular nos anos 20, publicou um pequeno artigo na edição número 166, de 18/02/1922, comentando alguns aspectos da Semana de Arte Moderna, ocorrida nas noites de 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. Por ser o único texto que fez referência à Semana, opto por utilizá-lo integralmente neste ensaio. Ei-lo:
Semana de Arte Moderna
Teve início, segunda-feira, em São Paulo, a “Semana de Arte Moderna”, bela idéia de Graça Aranha que encontrou, para realizá-la, o patrocínio dos nomes mais eminentes da cultura do Estado exemplar. A “Semana de Arte Moderna” consta de uma exposição permanente de pintura, escultura e arquitetura; de concertos de música de câmara, leitura de poemas e páginas literárias e de várias conferências sobre a nova orientação do espírito brasileiro. Graça Aranha disse da emoção na Arte Moderna; Ronald de Carvalho das últimas tendências da Arte, a propósito das expostas e da música de Villa-Lobos; e Renato de Almeida falou sobre a Filosofia Moderna no Brasil. A Semana é o grande assunto do alto mundo de São Paulo, e o Teatro Municipal esgota a sua lotação, todas as noites.
Este artigo da revista Para Todos afirmou um grande equívoco conceitual: que se deve a Graça Aranha a ideia/iniciativa da Semana. A bem da verdade, Graça Aranha participou daquele evento proferindo a conferência “A Emoção Estética na Arte Moderna”, mas o problema era saber de qual modernidade Graça se referia, visto que o ideal rebelde e inflamado pelas vanguardas europeias passou longe do discurso de Graça Aranha, preferindo este realçar uma integração do artista brasileiro “no Todo infinito”, provocando uma confusão entre produção artística, cosmogonia e transcendentalismo, justamente o oposto do que os modernistas paulistas da primeira geração almejavam para o movimento. Ressalta-se que essa impertinência de Graça Aranha alimentou, tempos depois, inúmeros deboches e galhofas, especialmente nas cartas trocadas entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira e nos artigos e manifestos de Oswald de Andrade.
Mas voltando ao artigo da Para Todos, percebe-se claramente o alto grau de desinformação a respeito da Semana Futurista. Nem os próprios paulistas entenderam direito a Semana, fato este muito bem demonstrado no livro 22 por 22: A Semana de Arte Moderna Vista pelos seus Contemporâneos (Edusp), de Maria Eugênia Boaventura. Neste estudo, a autora compilou os diversos textos circulados na imprensa paulista antes, durante e depois da Semana, e o que se vê foi mais o efeito do escândalo provocado pelo desconhecido, diferente, estranho e provocador. Creio que os objetivos dos organizadores do evento foram melhor conquistados no pós 22, quando a Semana já era uma referência passada, avaliada, assumida e/ou repelida.
Tentei seguir a proposta investigativa de Maria Eugênia Boaventura e iniciei, no ano passado, uma pesquisa de campo em acervos particulares, arquivos públicos e privados, coleções e outras tantas fontes, tudo no sentido de rastrear como a imprensa e a intelectualidade carioca narraram a Semana de 22. Fiquei perplexo e frontalmente frustrado quando não encontrei praticamente nada, a não ser o já citado artigozinho da Para Todos e um pequeno release do Jornal do Brasil, de duas linhas, na sua edição de 14/02/1922, que afirmava: “Começou ontem, em São Paulo, a Semana Futurista, que tem a participação de Mário e Oswald de Andrade e das pintoras Anita Malfatti e Tarsila do Amaral.”. Apenas essas duas referências e outro erro conceitual: já que Tarsila do Amaral estava em Paris quando da Semana, não participando da mesma.
Cheguei à insólita conclusão de que jornalistas e intelectuais da capital da República fizeram uma espécie de “conspiração do silêncio” em relação à Semana Futurista, e concluí isso pois vasculhei todos os arquivos ainda existentes dos jornais daquela época e só achei os referidos textos. Indiferença? Despeito? Desconhecimento? Falta de informação? É difícil estabelecer um único conceito para se compreender tal hiato. Desta forma, meus planos de “ler” a Semana de Arte Moderna via jornais e revistas do Rio de Janeiro não deu certo.
Talvez porque a noção de modernidade para os intelectuais e artistas cariocas fosse um pouco diferente, não centrada na proposta de vanguarda, fato tão caro aos paulistas. O Modernismo em São Paulo estava diretamente ligado à noção de desenvolvimentismo a la Indústrias Matarazzo, isto é, no fortalecimento das bases do Capitalismo e sua consequente transformação urbana e humana via prédios, costumes, fábricas, exposições, enfim, numa espécie de crescimento capilar das benesses do sistema, ainda que tais glórias fossem para poucos, especialmente para uma burguesia indecisa entre a tradicional família cafeeira e a modernização vinda de Paris. Já o Rio assumiu a sua Belle Époque e ser moderno passava, necessariamente, pelas discussões na Confeitaria Colombo, pela cultura outsider do Carnaval, pela semântica da rua, da avenida, do morro, da Cinelândia, ou seja, num complexo processo fora da lógica devoradora do mercado. Novamente, recorro à opinião de Mônica Velloso:
Na vida social carioca, as ruas são a arena do confronto, o local do trabalho ambulante, do convívio social, da ajuda mútua e da troca de informações. É nesse espaço que as camadas populares constroem seus canais de participação e de organização. A modernização do Rio de Janeiro não teria produzido uma reestruturação significativa da sociedade, na medida em que esta se mostrou incapaz de proceder a incorporação dos intelectuais e das camadas populares. Estas últimas seriam constantemente identificadas com o “aspecto da desordem”, incompatível com a imagem de uma cidade que se pretendia moderna. Enquanto cidade-capital, o Rio de Janeiro viveu de maneia particularmente sensível o clima controverso da instauração da modernidade. Em suma: não foram construídos os canais necessários de participação e expressão social. Esse fato acabou fortalecendo a fragmentação social: as camadas populares passaram a desenvolver seus próprios canais participativos, gerando uma “cidadania paralela”. Desta forma, a associação, às vezes involuntária, que frequentemente se estabelece entre os conceitos de moderno, modernidade e, especialmente, modernismo, de um lado, e a experiência paulista de 1922, de outro, acabou produzindo visões demasiado generalizantes. Em decorrência, tem-se as idéias de “pré-modernismo” ou “vazio cultural”, que aplicariam o período da virada do século XIX para o século XX. Nestes conceitos, está subjacente a idéia de um referencial externo: “pré” e “vazio” em relação a quê? (VELLOSO, 1996, pp.26-27)
Com esta afirmação, sente-se a complexidade deste assunto, o que não pode ser adequadamente analisado e explicado num pequeno ensaio como este. De fato, a condição de capital federal estabelece um diferencial importante e assaz sintomático. Aqui, o oficialismo político-comportamental foi levado a conviver com uma rica diversidade de tradições populares – regionalismos das mais diferentes origens e fontes, traços arcaicos e primários das culturas africanas e indígenas misturavam-se às tradições portuguesa, francesa e inglesa que, por sua vez, mesclaram-se ao cosmopolitismo das vanguardas artísticas vindas da própria Europa. Essa mistura conformou um repertório particularmente rico e complexo, prenhe das mais distintas representações e semantizações. A bem da verdade, São Paulo também possuía uma rede complexa e extensa de influências, mas a forma de lidar com essa diversidade foi outra. Talvez por aí consigamos entender o ufanismo da imprensa paulista quando da Semana e o total desdém do Rio de Janeiro.
Resgato o final do artigo da revista Para Todos: “A Semana é o grande assunto do alto mundo de São Paulo, e o Teatro Municipal esgota a sua lotação, todas as noites.” Outro equívoco: o teatro paulista não encheu todas as noites, muitos não compreenderam o que seria Arte Moderna e abandonaram o Municipal. Neste sentido, é sintomático o que afirmou Marcos Augusto Gonçalves, no seu recente livro 1922 – A Semana que não Terminou, publicado este ano pela Companhia das Letras:
Cálculos do preço médio da cadeira do Municipal variavam de acordo com a metodologia. Em 1921 estariam entre 12 mil réis e 20,6 mil réis. De acordo com Menotti del Picchia, as cadeiras para os festivais da Semana custaram 20 mil réis no primeiro dia, caíram para 12,5 mil réis no segundo, e chegaram a 5,3 mil réis no terceiro. Camarotes e frisas foram oferecidos às tradicionais famílias por 196 mil réis na estréia – e passaram a 77 mil réis no dia seguinte. (GONÇALVES, 2012, p.268)
Percebe-se claramente o gradativo esvaziamento do Teatro Municipal ao longo do evento. Segundo alguns relatos, especialmente os do pintor Di Cavalcanti nas suas Memórias, a última noite da Semana foi deveras vazia, com discursos dos artistas para uma platéia diminuta e formada, principalmente, por aqueles que organizaram o próprio festival. Tal fato ajuda a compreender o relato de Menotti del Picchia, bem como sua explicação acerca da desvalorização dos ingressos durante a Semana Futurista e atestando, desta forma, a minha tese da total desinformação da imprensa carioca acerca do evento paulista e de sua organização.
Todos esses testemunhos demonstram a complexidade e até mesmo a atualidade da tão afamada Semana de Arte Moderna. Certamente, os seus idealizadores não imaginavam o quanto este evento repercutiria na história cultural brasileira, tornando-se uma espécie de divisor de águas na nossa literatura, na nossa cultura. Inicialmente circunscrita ao contexto paulista, hoje é inegável a sua reverberação em todo o Modernismo brasileiro.
O que busquei neste rápido trabalho foi demonstrar que, apesar de toda a sua importância, na sua época a Semana não logrou alcançar os diferentes rincões do Brasil. Se ela é tão aclamada e investigada nos dias de hoje, tal fato se dá pelo distanciamento temporal e o nosso eterno desejo de revisar o cânone. No seu momento, a Semana foi um evento basicamente paulista, com forte impacto no contexto cultural de São Paulo. Meu principal foco investigativo – a imprensa carioca e sua narrativa da mesma Semana – foi simplesmente uma idéia que poderia ter dado certo, uma vez que os principais jornais e revistas da então capital federal ignoraram, ou até mesmo desconheceram, o que se passou no Teatro Municipal de São Paulo nas noites de 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922.
Desta forma, passou um tanto longe do Rio de Janeiro o radicalismo preconizado pelos discursos vanguardistas vindos de Paris, e que tiveram um fortíssimo eco no contexto literário paulista desta época. Como foi demonstrado neste ensaio, o ideal de modernidade defendido e praticado pelos artistas e intelectuais cariocas não esteve em consonância com o que se viu em São Paulo, com o que se gritou em São Paulo. Ou seja, a defesa da idéia de modernidade era unânime, mas os mecanismos para alcançá-la foram heterodoxos e diversificados, criando uma espécie de cisão estética e ideológica entre artistas e pensadores destas duas grandes metrópoles.
Assim sendo, admoesto a todos a relermos a nossa tradição modernista nas mais diferentes direções e orientações, percebendo as rachaduras do nosso processo histórico-cultural, percebendo as diversas representações e sentidos de um projeto marcado pela heterogeneidade semântica, estética e ideológica.
Referências Bibliográficas
BROCA, Brito. A Vida Literária no Brasil 1900. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2000.
CAVALCANTI, Di. Viagem da Minha Vida – Memórias. São Paulo: Civilização brasileira, 1955.
GOMES, Ângela de Castro. Essa Gente do Rio… Modernismo e Nacionalismo Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.
GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922 – A Semana que não Terminou. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
LIMA, Alceu Amoroso. Memórias Improvisadas. Petrópolis: Vozes, 1973.
MORAES, Marcos Antônio. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: EDUSP, 2000.
REVISTA PARA TODOS. Edição 166, de 18/02/1922. (Arquivo Biblioteca Nacional – Setor Periódicos).
RODRIGUES, Leandro Garcia. Alceu Amoroso Lima – Cultura, Religião e Vida Literária. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2009.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão – Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SOARES, Lucila. Rua do Ouvidor 110. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio, 1996.
[1] Doutor e Pós-doutor em Estudos Literários pela PUC-Rio. Contato pessoal: prof.leandrogarcia@hotmail.com. Texto publicado como artigo científico na e-scrita: Revista do Curso de Letras da UNIABEU, v. 3, p. 121-132, 2012.