Homens de Boa Vontade Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira Presidente do Centro Dom Vital Professor Titular Universidade Católica de Petrópolis O papa João XXIII, em sua brilhante encíclica Pacem in Terris, de 1963, proclamava: “Como representante – ainda que indigno – daquele que o anúncio profético chamou o “Príncipe da Paz” (cf. Is 9,6), julgamos nosso dever consagrar os nossos pensamentos, preocupações e energias à consolidação deste bem comum. Mas a paz permanece palavra vazia de sentido, se não se funda na ordem que, com confiante esperança, esboçamos nesta nossa carta encíclica: ordem fundada na verdade, construída segundo a justiça, alimentada e consumada na caridade, realizada sob os auspícios da liberdade” (n. 166). O papa Francisco tem sido aclamado no mundo inteiro como o maior líder espiritual (e até político!) de nossa época. Contudo, algumas de suas declarações têm gerado perplexidade em católicos e não católicos, crentes e não crentes, críticas veiculadas preponderantemente pela mídia leiga. Efetivamente, talvez esteja aí uma das razões dessas críticas: a falta de familiaridade não só com a doutrina cristã, mas sobretudo com a consciência que as religiões e também a Igreja Católica têm de si mesmas. Esmurrar o semelhante: teria o papa proposto algo do gênero? Claro que não! E estão certos aqueles que lembram a passagem evangélica de apresentar a outra face ao inimigo. Na verdade, o papa Francisco ousou pôr-se no lugar das pessoas que se sentem ofendidas. É nesta ordem de coisas que podemos e devemos entender este comentário que muitos consideraram infeliz. Trata-se da busca de entendimento das reações das pessoas, no caso que se possam sentir ofendidas. Esta é uma atitude autenticamente cristã: compreender o semelhante. Ultrapassar esta fronteira na interpretação das palavras de Francisco revela má vontade hermenêutica. E também a analogia não foi feita para justificar a violência do atentado de Paris, previamente condenado pelo papa. Gostaria de me deter, à guisa de ilustração do que vimos lendo na mídia ultimamente, em algumas passagens do inapropriado artigo “Je suis demagogo” de autoria de Guilherme Fiúza, que apareceu no Globo, no dia 17/01. Vê-se, com facilidade que também a doutrina católica, e não somente o pontífice, tem sido objeto de crítica superficial. Mas comecemos com o papa: “Talvez uma das figuras mais representativas deste momento esquisito seja o Papa Francisco. Sua Santidade tem provavelmente uma espécie de João Santana ao pé do ouvido, para soprar-lhe as últimas tendências do mercado. Foi assim que o líder máximo da Igreja Católica mergulhou na causa gay.” Nos parágrafos seguintes, Fiúza dedica-se a ridicularizar a doutrina católica sobre a sexualidade, sem nuança alguma. Ao contrário, resvalando para o deboche, como se pode ver na conclusão dos mesmos parágrafos: “Ou seja, o Papa bonzinho está jogando para a arquibancada”. Na mesma área de reflexão, porém em ocasião mais recente, o papa foi criticado quando defendeu o planejamento familiar, que no âmbito católico é bem conhecido não somente com as restrições retratadas frequentemente pela mídia, mas também nos valores positivos que ora foram explicitados pelo papa que buscou uma linguagem mais compreensível, embora mantendo a mesma doutrina da Igreja, explicitada na encíclica Humanae Vitae de Paulo VI, 1968 (permitam-me, uma vez mais, a longa citação): “É de prever que estes ensinamentos não serão, talvez, acolhidos por todos facilmente: são muitas as vozes, amplificadas pelos meios modernos de propaganda, que estão em contraste com a da Igreja. A bem dizer a verdade, esta não se surpreende de ser, à semelhança do seu divino fundador, “objeto de contradição”; mas, nem por isso ela deixa de proclamar, com humilde firmeza, a lei moral toda, tanto a natural como a evangélica. A Igreja não foi a autora dessa lei e não pode portanto ser árbitra da mesma; mas, somente depositária e intérprete, sem nunca poder declarar lícito aquilo que o não é, pela sua íntima e imutável oposição ao verdadeiro bem comum do homem. Ao defender a moral conjugal na sua integridade, a Igreja sabe que está contribuindo para a instauração de uma civilização verdadeiramente humana; ela compromete o homem para que este não abdique da própria responsabilidade, para submeter-se aos meios da técnica; mais, ela defende com isso a dignidade dos cônjuges” (n. 18). A Igreja tem formado pacientemente as famílias para uma paternidade responsável e tem lutado, no Brasil e mundo afora, em favor da saúde familiar e do bem estar das crianças menos favorecidas. Lembremo-nos de Irmã Dulce, lembremo-nos da Pastoral da Criança, de D. Zilda Arns, além-fronteiras. Voltemos, contudo, a outro tema importante do artigo de Fiúza. Continua o articulista, entrando na discussão do atentado ao Charlie Hebdo: “Depois do atentado em Paris, a reunião no departamento de marketing do Vaticano deve ter fervido. Francisco tinha ali várias causas bondosas para escolher. Demorou um pouco, mas saiu a decisão: o Papa defendeu o Islã contra as ofensas dos chargistas franceses — uma posição candidamente desastrosa”. E embora o papa tenha defendido a religião islâmica e não os terroristas, o articulista continua no tom de deboche, sem propor qualquer reflexão mais relevante: “O marqueteiro de Francisco deve ter feito o cálculo certeiro: nada mais surpreendente, exótico e progressista do que um líder católico defendendo o Islamismo. E ainda soltou a pérola: “Liberdade de expressão tem limite”. Não, Francisco. Não tem. Seria como declarar que democracia tem limite. O que deve ser limitado — e já é, pela lei — é a expressão criminosa ou lesiva, não a liberdade. Está vendo como é dura a vida do populista? Esse negócio de ficar levantando bandeiras não é fácil, a gente acaba se atrapalhando mesmo.” Parece-me que o articulista defende, como o papa, a liberdade de expressão. Contudo, é importante entender que nem todos pensam, nem as nossas leis admitem uma liberdade de expressão qualquer, especialmente quando se trata de respeito às minorias. Certamente há hierarquia de valores aqui e alhures e a liberdade de expressão como valor ocidental supõe a compreensão de outras hierarquias de valor não ocidentais. E esta é a grande dificuldade que