Dia 20/12, o colunista de O Globo, José Castello, publicou uma crítica ao livro Clio, do membro do CDV, o imortal Marco Lucchesi. Divulgamos o texto abaixo. Por José Castello – O Globo Um poeta deve se contentar com migalhas. Com fragmentos quase invisíveis que, trabalhados com amor e paciência, se transformam em um poema. “Não tenho/ novas/ del-rei/ apenas indícios”, constata Marco Lucchesi em um dos poemas de “Clio” (Biblioteca Azul). Fracos sinais, mínimos traços, imagens que, justapostas, compõem sua escrita. Restos. A leitura de “Clio” me enche de espanto e inspiração. Será o mais belo livro que Lucchesi já escreveu? Provavelmente, sim. São poemas que não nos deixam quietos, que nos comovem e excitam. A poltrona balança, como que agitada pela ventania dos grandes mares. Poemas servem mesmo para isso: para nos revolver o espírito. É tudo muito frágil e, por isso mesmo, transformador. “Trago nos olhos/ o clarão/ de um mundo inacabado”, escreve Lucchesi em outro momento. Não é simples manejar o incompleto. As palavras pedem sentido. Pedem coerência _ mas ela lhe escapa. O poeta é um perseguidor, fadado, porém, ao fracasso. Escreve Lucchesi, em um momento de alta inspiração: “E/ quando começo/ a buscar/ mais longe/ me vejo”. Não é só que a busca não funcione: em vez de aproximar, ela afasta. E assim, como um mendigo, o poeta persegue as palavras, implorando por aquilo que elas nunca irão lhe dar. Poemas curtos, ríspidos, cheios de cortes e de atalhos. Poemas em que a língua só se contenta com o osso. Nenhuma retórica, nenhum desperdício. Lucchesi nos diz o que tem a dizer e fica nisso. Sobra o que, em outro poema, define como “uma dor impronunciável”. O que pode ser uma definição precisa, embora atroz, da existência. Sim, o poeta tem seus instrumentos _ tem a língua que maneja com perícia. Tem suas estratégias. Mesmo assim, não pode contar muito com eles. “O capitão-mor/ (…)/ sabe como são falhos/ e precários/ agulhas portulanos esmeraldos”. Portulanos _ cartas marítimas. Palavras antigas, vindas da época do descobrimento; palavras gastas pelo tempo e que, no entanto, conservam sua potência. Os instrumentos do poeta são insuficientes. Com eles, contudo, continua a escrever. Não chegam às fronteiras do império da verdade; mas as acariciam, e esse afago é outro nome para o humano. O poeta sabe que está regido por uma lei, que ele mesmo define assim: “Tudo/ se/ perde/ só/ não se/ perde/ essa/ vontade de perder”. Vontade inútil, que conduz ao desencontro e, mesmo, à derrota. Ainda assim, ela faz o poeta avançar. Estranha escrita que, desde as primeiras palavras, sabe que seu objeto lhe escapará. Por fim, ela mesma ocupará os dois papéis: sujeito e objeto. Deve se bastar. Nem por isso despreza o mundo: seu fracasso nos dá a dimensão de sua grandeza, mesmo que não suportemos encará-la. Sabe que detém um poder incerto, que vigora sobre um território inacessível. Terra vaporosa, erguida na incerteza, é ali, no entanto, que ele deve habitar. “Sou da pátria de fronteira/ rei de Portugal e Algures”, escreve. Para, linhas abaixo, enfatizar: “rei de Algures e Nenhures”. Rei de nada _ governa um território não localizável, “sem arautos nem bandeira”, que, mais que possuir, ele precisa construir. Sai de si essa terra. É a si mesmo, com sua nave louca, que deve atravessar e governar. As duas figuras que norteiam o livro de Marco Lucchesi _ Clio, a musa da memória, e Insônia, a ameaça do vazio _, combinadas, lhe traçam um destino nada promissor. “Meu pensamento/ é um porto/ de conjuras e naufrágios”, ele admite _ fascinado, ainda, pela figura oculta de Dom Sebastião. Se há um destino? Escreve porque acredita que sim. Mas os vestígios são raros, os sinais intermitentes, as lacunas (abismos) se abrem mais vastas que o incerto chão. É nessa estrada quebradiça que ele avança. Mais grave: diante do esforço imenso, luta insana com as palavras, é ela tudo que lhe sai. Porque a estrada é ele mesmo, poeta solitário. Escreve atiçado pela ideia do desastre. A qualquer momento, um evento, uma desgraça pode dobrá-lo. Constata: “A poesia é o mar vermelho do real/ afoga-se quem busca a promissão”. Nada se promete: e é esse o limite que o poeta precisa aceitar, ou não conseguirá escrever. Ficar com o vermelho ardente do real (sangue), dele arrancar palavras, esboçar caminhos: eis tudo. Eis a poesia. Em Deli, hospedado no Sebastian Inn, perplexo, constata: “Procuro/ no espelho do hotel/ a fonte em que se apuram meus enganos”. Eis aí, resumido, seu destino: escrever é enganar-se. Chegando a Adis Abeba, o poeta-viajante se depara com outra parte da verdade: “A história é uma esfinge a erguer atrás do sol/ as velhas pálpebras”. Eis Clio _ pálpebra, véu que recobre os olhos, cegueira. A memória é feita mais de esconderijos que de luz. Nesse cenário inconstante, longa planície de trevas, só o silêncio se aproxima da verdade. Só o silêncio diz o que é. O poeta constata: “sujo de silêncio/ ébrio/ de silêncio/ aclaro/ as úmidas/ cisternas/ do coração”. Onde as palavras fracassam, ou pelo menos vacilam, melhor engoli-las a seco. Melhor trabalhar com sua ausência ou, pelo menos, com sua impossibilidade. Melhor ficar com o vago: “a selva/ espessa/ do indeterminado/ tangida/ de secretas/ harmonias”. Inquietante destino _ que me afeta, brutalmente, como leitor: só na desarmonia resiste alguma esperança de harmonia. O poeta deve partir do que é. Deve partir do que tem _ tão pouco. E não temer a perdição. Sereno, diz: “eu me dissipo/ nas coisas/ que congrego”. Mesmo na incerteza, mesmo quando as coisas lhe escapam, um poeta deve incluir tudo. Aqui me vem um trecho de entrevista de Lucchesi ao poeta Floriano Martins. “Não quero ou. Quero e”, afirma o poeta. Recorda uma cena da juventude quando, em certa tarde do Recife, acabou de escutar um concerto de Vivaldi, na Sala Cecilia Meirelles. Logo depois, encontra-se, por acaso, com Luis Gonzaga que, num rompante, lhe toca o Asa branca. “Não era