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Nihil Novum sub sole: “Cristo não é o Cristo” segundo Tony Bellotto

Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira Presidente do Centro Dom Vital Diurnarius diurnarium fricat. Permitam-me começar com dois provérbios em Latim. Espero que o que inicia este parágrafo se clarifique até o final desta matéria; o que lhe dá título é bem conhecido de todos: nada novo sob o Sol. Com efeito, a matéria de Tony Bellotto no Globo de hoje está nesta precária situação. Contudo, parece que o grande jornal carioca vê as coisas de modo diferente: que ainda consegue tirar leite de pedra. Pelas minhas contas, a matéria de hoje sobre o Cristo Redentor do Corcovado é a sexta, em duas semanas, escrita por quem desconhece a doutrina cristã e pontifica não somente sobre a liberdade de expressão e de criação, mas também sobre o conteúdo da fé. O título da matéria de Bellotto é de tal obviedade que não se sabe mais qual é o Cristo que não é o Cristo: é o Redentor do Corcovado que não é o Cristo bíblico (sic!) ou, o Cristo bíblico que não é o Cristo Redentor do Corcovado? O pior é que qualquer resposta vale, pois todos já notaram que o título não tem sentido. Simplesmente porque é pretensioso, não tem estilo. Está mal escrito. Indico aqui algumas expressões que são o “leite fresco” de Bellotto. 1) “O veto é um atentado à Liberdade”, com maiúscula, aquela liberdade com “L” proclamada por Arnaldo Bloch; 2) “Nada mais anticarioca do que a falta de humor”, parece que tirou isto da boca dos turistas que visitaram o Rio nas últimas semanas ou, ao menos, das reportagens que se reproduziram exaustivamente na mídia; 3) “… desinteligência e intolerância dos clérigos responsáveis por esse veto”, uma elegância desnecessária de Bellotto, mas que se completa abaixo, ao refletir sobre a formação do clero: 4) “de que adiantaram todos aqueles anos no seminário…?”; 5) “Um Estado laico não pode permitir que uma religião detenha os direitos de um monumento público tão importante…”, refere-se a um Estado de Direito? Sim, é a democracia que defende a liberdade de expressão e a liberdade religiosa, que inclui a proteção do culto e de seus símbolos, acidentalmente ligados no caso ao direito de imagem sobre a estátua do Cristo, ou Bellotto está propondo a supressão de algum direito? 6) “… O Cristo Redentor não é o Jesus Cristo da Bíblia”, de novo o mesmo problema, pois ou o autor se refere ao Cristo Redentor do Corcovado ou está fazendo nova teologia ao dizer que o Cristo do Evangelho não é o Redentor; a citação que se segue é um pouco mais longa, serve para percebermos o sentido poético de nosso autor, de tendência barroca, aliás: 7) “O Cristo bíblico é uma figura geralmente representada pela imagem de um homem agonizante pregado a uma cruz, com chagas, feridas sangrentas e outras marcas de tortura espalhadas pelo corpo descarnado, cuja face encovada e olhos cerrados sombreados por uma coroa de espinhos indicam uma assustadora iminência do rigor mortis, a rigidez do corpo que ocorre horas após a morte. As imagens do Cristo crucificado impressionam pela violência e morbidez.” Ora, a pessoa do Redentor não é exatamente o Cristo Ressuscitado do Evangelho? E esta verdade evangélica não foi a Igreja que a transmitiu por dois mil anos e que foi a base espiritual dos valores brasileiros e para a estátua que domina a Cidade do Rio? A novidade do Cristianismo é justamente o Cristo Ressuscitado, que morreu, sim, mas venceu a morte por todos nós. Há muitas passagens infelizes no artigo “Cristo não é o Cristo”. Contudo, em homenagem ao nome do autor, fico com oito belas citações; a última aparece em destaque no próprio Jornal: 8) “O Cristo carioca personifica um homem ereto, simpático, plácido e saudável, em cujo rosto se pode perceber um sorriso sutil.” Parece poesia. A segunda metade do artigo (esta era a primeira metade!) é ainda mais pueril. O autor continua a trazer novidades: a simpatia do carioca, as mazelas do Rio, o Cristo de braços abertos, citações bíblicas raivosas, a parte mais famosa da história da construção do Cristo do Corcovado, o Cristo Redentor de todos etc. Bertrand Russell, um dos mais prolíficos escritores ingleses do século XX, que escreveu obras de peso na área da Lógica, perdeu-se em escritos de segunda categoria, às vezes, obras manuais e panfletárias. E é de um panfleto que Bellotto toma a citação do pensador inglês para o fechamento de seu artigo. Prêmio Nobel, Russell era ateu e não fez juízo isento a respeito do Cristianismo. Contudo, suas ideias servem de chave para interpretação geral do texto de Bellotto: a crítica infundada ao Cristianismo em nome dos Direitos humanos perpetrada pelo inglês, e por companheiros como Sartre, constituía-se num ativismo anticristão que, passadas as décadas pode ser entendida como uma busca de supressão da liberdade religiosa. Bellotto repete o que ouviu aqui e acolá. Diante de todas as vozes que ouvimos nestas últimas semanas, proponho esta paráfrase a partir de outro provérbio latino: Diurnarius diurnarium fricat: um jornalista afaga outro (A propósito, “diurnarius”, jornalista, é termo novo, da atualização do vocabulário latino para a nossa época, conforme o Lexicon Recentis Latinitatis, Vaticano, 2004). Bellotto parece não encontrar nada novo sobre o assunto desde Bertrand Russell e do que escreveram seus colegas do Globo recentemente. Até a Igreja Católica a que se refere pertence à época que seus avós, que, conhecedores da Bíblia e do Latim, diziam: “Nada novo sob o sol”. Ora, os grandes pensadores em atividade no mundo de hoje estão conscientes de que a luta pelos direitos inclui a luta pela liberdade religiosa. Recomendo, de modo especial, as obras do filósofo canadense Charles Taylor, que esteve no Brasil, no ano passado, para discutir temas relativos ao processo de secularização das nossas sociedades. É neste patamar do Direito que se deve situar o debate. O Estado laico numa sociedade democrática não somente respeita, mas preserva as tradições e as diferenças religiosas da nação. O leitor una seus sofrimentos às

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Santo Isidoro de Sevilha: vida, obras, ideias

Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira Presidente do Centro Dom Vital   Vida. De família originária de Cartagena, Isidoro (*Cartagena, 560; †Sevilha, 636) era o mais jovem de quatro irmãos: Leandro, Fulgêncio e Florentina. Seu irmão, Leandro, bispo de Sevilha, predecessor do nosso santo, foi o responsável por sua educação. Depois da morte de Leandro, por volta de 600, Isidoro é nomeado bispo de Sevilha. Em 619 convoca o II Concílio de Sevilha. Em 633 preside o IV Concílio de Toledo. Seu episcopado durou quase quarenta anos, influenciando enormemente a cultura espanhola e em seguida a europeia. Morre tranquilamente em sua cela aos 4 de abril de 636. O VII Concílio (653) declarou-o “doutor insigne, a glória mais recente da Igreja Católica”. Foi declarado Doutor da Igreja por Inocêncio XIII aos 25-IV-1722. Obras. Gramaticais: Differentiae, sive de proprietate sermonum libri duo. Históricas: Chronicon, história universal que descreve os acontecimentos desde os primórdios até o ano de 616; Historia de regibus Gothorum, Vandalorum, Suevorum, continuação da obra anterior, escrita em 624; célebre o prólogo: De laude Spaniae; Liber de viris illustribus. Filosóficas: Liber de natura rerum; Liber de ordine creaturarum. Teológicas: Sententiarum libri tres, compêndio de fé (livro I) e de moral (livro II e III); foi um dos mais lidos na Idade Média e, por seu caráter sistemático, preludia a escolástica. Mais tarde, nele inspirar-se-ão outros autores de Sentenças, o mais famoso, Pedro Lombardo, no século XII; De fide catholica contra judaeos. A verdade do cristianismo como cumprimento do Antigo Testamento; Exegese: In libros veteris et novi Testamenti prooemia, introdução aos livros da Escritura; De ortu et obitu patrum, Qui in Scriptura laudibus efferuntur, descrição biográfica de sessenta e quatro personagens do AT e de vinte e dois do NT; Liber numerorum, qui in Sanctis Scriptura occurunt, manual mnemotécnico para os pregadores, com interpretação mística dos números; Allegoriae quaedam sacrae Scripturae; Quaestiones in Vetus Testamentum. Liturgia: De ecclesiasticis officiis, manual de Liturgia, especialmente importante para o estudo da liturgia visigótica. Espiritualidade: Synonimorum de lamentatione animae peccatricis libri II, diálogo de um homem pecador com sua razão. Regula monachorum. Direito: Collectio Canonum Ecclesiae Hispaniae, coleção de cânones que reeu a Igreja na Espanha até a reforma gregoriana. Enciclopédicas: Originum sive Etymologiarum libri XX, a mais famosa e importante obra de Isidoro, que, em vinte livros resume toda a cultura antiga. Pensamento. O trabalho de Isidoro consiste, sobretudo, numa sistematização e universalização do saber. Seu método, entretanto, revela criatividade que deve ser reavaliada no pensamento contemporâneo, tão sensível ao tema da linguagem e às estruturas das palavras. De fato, seu método pretende partir das palavras para as coisas. O melhor exemplo disto são as Etimologias, certamente sua obra de maior sucesso. Contudo, hoje não se pode pôr em segundo plano obras como Diferenças ou da Propriedade dos Discursos em dois livros (Differentiae sive De Proprietate Sermonum Libri Duo). Para Isidoro, Deus é fonte de todo bem e de toda incorruptibilidade. Os outros entes são bons por participação e, portanto, de modo limitado; e a matéria pode ser considerada o princípio que restringe o dinamismo de suas formas. Os graus dos entes são modos de participação nas perfeições que, por natureza, pertencem a Deus. A tendência de Isidoro é, pois, neoplatônica. Não obstante, Isidoro tem nova concepção do corpo que supera essa tradição, especialmente na versão de Agostinho. Sua importância manifesta-se também nos seus estudos de direito, de política e de história. Ele é, ainda, fonte segura para o conhecimento da patrística, pois parece ter conhecido, no original, autores como Tertuliano, Boécio, Jerônimo, entre muitos outros. Por isso mesmo, Isidoro será referência e manancial de informações até a Escolástica. Santo Tomás cita as Etimologias com frequência em suas obras. As Etimologias constam de vinte livros, que tratam de: I. Gramática; II. Retórica e Dialética; III. Matemática, Música e Astronomia; IV. Medicina; V. Direito e Cronologia; VI. Bíblia e outros livros; VII. Teologia; VIII. A Igreja e as seitas; IX. Língua e Povos; X. Lexicologia; XI. Anatomia; XII. Zoologia; XIII. Geografia; XIV. Geografia; XV. Arquitetura e agrimensura; XVI. Mineralogia; XVII. Agricultura; XVIII. Guerra e torneios; XIX. Navios e casas; XX. Alimentos e ferramentas. Antologia Etimologias, X, 1: Sobre certos vocábulos dos homens A origem de determinadas palavras não está clara para todos, especialmente de onde derivam. Por isso e para um conhecimento do assunto, escrevemos esta obra. É verdade que os filósofos explicam a origem das palavras, sua procedência. Por exemplo, mediante um critério de derivação, dizem que homo deriva de humanitas, e que sábio provém de sabedoria, porque primeiro existiu a sabedoria e depois o sábio; entretanto, a origem de determinadas palavras manifesta outra razão especial. Assim, homo deriva de humus, que é de onde propriamente recebe seu nome. Graças a exemplos como esses, incluímos alguns vocábulos nesta obra. Etimologias, II, 24: Sobre a definição de Filosofia A filosofia é o conhecimento das coisas humanas e divinas, acompanhado do esforço de bem viver. E consta de duas naturezas: a ciência e a opinião. A ciência se dá quando uma coisa é conhecida com certeza pela razão; a opinião, ao contrário, quando a coisa permanece incerta e nenhum conhecimento seguro se pode dar; como, por exemplo, se o sol é do tamanho que se vê, ou é maior do que a própria terra; ou ainda se a lua tem forma esférica ou é côncava; se as estrelas estão firmes no céu ou andam errantes no firmamento; qual é a magnitude do céu e de que matéria está composto; se permanece quieto ou imóvel, ou gira em incrível velocidade; qual é a grandeza da terra e sobre que fundamento se encontra sustentada e equilibrada. Isso tudo é, pois, expresso em seu próprio nome, que quer dizer em latim “amor à sabedoria”; pois, em grego, philos significa “amor” e sophía, “sabedoria”. A filosofia divide-se em três partes: a primeira, a natural, que em grego se chama física, em que se trata da natureza; a Segunda, a moral, chamada ética, em grego, e trata dos costumes;

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Relativismo Religioso e Totalitarismo Anticristão

 Pe. Anderson Alves Doutor em Filosofia – UCP No dia 16 de janeiro de 2014 a Pontifícia Comissão Teológica Internacional publicou um extenso e importante documento, elaborado entre 2009 e 2014: “Deus Trindade, unidade dos homens: o monoteísmo cristão contra a violência”[1]. Consiste em um estudo do discurso cristão sobre Deus, defrontando-se com a tese segundo a qual haveria uma relação intrínseca entre monoteísmo e violência. Atualmente afirma-se que o monoteísmo, por acreditar ser o detentor de uma verdade absoluta, é fonte de intolerância, violência e ameaça a democracia. Por sua vez, o politeísmo seria intrinsecamente tolerante e fundamental para a democracia. Esse pensamento pretende defender um relativismo religioso absoluto, mas acaba sendo uma verdadeira forma de totalitarismo anticristão. O documento responde duas questões: como a teologia católica pode se confrontar criticamente com a opinião cultural e política que estabelece uma relação intrínseca entre monoteísmo e violência? E como a fé no único Deus pode ser reconhecida como princípio e fonte do amor entre os homens? O texto afirma que a fé cristã reconhece na excitação à violência em nome de Deus a máxima corrupção da religião. O cristianismo chega a esta convicção a partir da revelação da própria intimidade de Deus, que nos chega através de Jesus Cristo. O capítulo primeiro – que expomos aqui – esclarece a noção de monoteísmo, apresentada geralmente de modo demasiado vago. Aqui há uma crítica à simplificação cultural que afirma ser o monoteísmo algo necessariamente violento e o politeísmo, intrinsecamente tolerante. Então se reafirma que as guerras interreligiosas e também a guerra contra a religião são totalmente insensatas2. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer Deus como “princípio e o fim” da existência de cada pessoa e de toda comunidade humana. Por sua vez, o homem é naturalmente capaz de reconhecer Deus como criador do mundo e como seu interlocutor pessoal. Nesse sentido, afirma-se a existência do homo religiosus, a qual é deduzível da experiência religiosa dos homens. A partir de então, podemos questionar: há um nexo necessário entre o monoteísmo e a violência? Uma pergunta estranha, pois justamente o Ocidente considerou por séculos o “monoteísmo” a forma de religião culturalmente mais evoluída, por ser o modo de pensar o divino mais congruente com os princípios da razão. De fato, a unicidade de Deus é acessível à filosofia – desde Sócrates, Platão, Aristóteles até o Deísmo moderno – e foi identificada como princípio da razão natural que precede as tradições históricas das religiões. Ocorre que a cultura contemporânea reage às grandes ideologias do século XX, as quais pretenderam ser científicas e dirigidas a um progresso indefinido. Houve então um predo- mínio da busca pela verdade, a qual justificou concepções filosóficas e políticas que levaram à humanidade ao abismo das duas grandes guerras mundiais. Em oposição a isso, hoje se tende a privilegiar a pluralidade das visões sobre o bem e sobre o justo, sem buscas pela verdade. Isso gera a tensão entre o reconhecimento do pluralismo e um princípio relativista. De fato, conhecer e respeitar as diferenças culturais “representa uma vantagem para a valorização das singularidades e para a abertura a um estilo hospitaleiro da convivência humana”. Porém, há um grave problema: o mero respeito às diferenças sem uma busca pela verdade gera a impossibilidade do diálogo. De modo que as pessoas e os grupos “são induzidos à desconfiança – se não à indiferença perante o empenho em buscar o que é comum à dignidade do homem” (n. 4). O relativismo e o chamado “politeísmo dos valores” não podem ser o princípio da democracia e do respeito pela dignidade humana, porque geram incomunicabilidade, desconfiança, indiferença pela verdade e desprezo por aquilo que une os homens: a sua mesma dignidade de pessoa. O relativismo é fruto da perda de confiança na razão humana e gera a suspeita em relação às outras pessoas, assim como uma perda de motivações. Isso faz com que as relações humanas sejam abandonadas “a uma gestão anônima e burocrática da convivência civil” (ibid.). Consequentemente, se dá o crescimento de uma imagem pluralista da sociedade e a afirmação de um desígnio totalitário do pensamento único: surge o discurso “politicamente correto”. O relativismo se revela como uma máscara que esconde um secreto absolutismo, especialmente feroz contra os cristãos[3]. Para o relativismo atual a verdade é considerada uma ameaça radical para a autonomia do sujeito e para a abertura da liberdade, porque a pretensão de uma verdade objetiva e universal, se bem que acessível ao espírito humano, é imediatamente associada a uma pretensão de posse exclusiva por parte de um sujeito ou grupo. A ideia de que a busca da verdade seja necessária para o bem comum é tida por ilusória. Na atual compreensão, a verdade estaria inseparavelmente relacionada com a “vontade de poder”, por isso a “verdade”, principalmente a religiosa, passa a ser vista como raiz de conflito e de violência. O colapso cultural da atualidade é tão grave que afirma ser o monoteísmo arcaico e despótico, enquanto o politeísmo seria criativo e tolerante. A dita crítica se concentra na denúncia radical do cristianismo, justamente a religião que aparece como protagonista na busca por um diálogo de paz, tanto com as grandes tradições religiosas quanto com as culturas laicas. Certamente, o fato dos cristãos serem descaradamente associados por sua fé no Deus Único a uma “semente da violência” fere milhões de autênticos crentes, especialmente porque eles vivem totalmente afastados da pregação da violência. Além disso, em muitas partes do mundo, os cristãos são maltratados com a intimidação e a violência por causa exclusivamente da sua pertença à comunidade cristã. Estima-se que atualmente 200 milhões de cristãos são perseguidos por causa da sua fé, algo que ocorre diante do silêncio cúmplice de boa parte dos governos e meios de comunicação, que se empenham em difundir uma visão distorcida do cristianismo: incentivador de violência4. Evidentemente não se pode negar o preocupante fenômeno da “violência religiosa”, a atual “ameaça terrorista”. Mas também não se pode ignorar que são precisamente os cristãos que mais sofrem violências

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Pe. Anderson Alves

Sacerdote da Diocese de Petrópolis-RJ, Pe. Anderson Alves é doutor em filosofia e professor na Universidade Católica de Petrópolis – UCP. Textos no Site CDV: Relativismo Religioso e Totalitarismo Anticristão

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Salmo Amigo: Frei Betto, a nova voz do Coro

Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira Presidente do Centro Dom Vital O Globo de hoje já não nos surpreende, passadas duas semanas de matérias que versam sobre tudo e qualquer coisa, incluindo doutrinas teológicas imprecisas e incorretas, para opinar contra o parecer da Arquidiocese sobre o filme “Inútil Paisagem”, chegou a vez da “exegese” ou da teologia de Frei Betto. Trata-se duma hermenêutica que usa os salmos fora de contexto. Vale a pena lembrar que o filósofo holandês, Baruch de Spinoza, no século XVII, escreveu uma das obras mais críticas à Sagrada Escritura, o Tratado Teológico-Político, onde defendia a necessidade de ler a Escritura no seu contexto. De lá para cá, não há grandes exegetas, nem os exegetas cristãos nem judeus, que neguem este princípio estabelecido no capítulo VII da obra citada. É verdade que outros mestres da Escritura, de um modo ou de outro, defenderam algo análogo, como o judeu Maimônides, na Guia dos Perplexos, e o próprio Tomás de Aquino na Suma Teológica. Assim, Maimônides negou a leitura antropomórfica da Escritura e o próprio Tomás seguiu esse caminho. Fora de contexto, foi outra história narrada pelo dominicano Frei Betto acerca de seu encontro com o papa Francisco na Praça de São Pedro. Algo absolutamente casual numa audiência geral que o brasileiro valoriza como se fosse uma audiência privada. Segundo o frade brasileiro, o papa teria ouvido seu clamor de absolver outros dominicanos, entre eles, Giordano Bruno, do século XVI, condenado à época. O suposto diálogo, que se inicia com os conselhos do frade ao papa Francisco, aparece relatado pelo próprio Frei Betto no Globo do dia 10 de abril passado: — Como pai amoroso, dialogue sempre com a Teologia da Libertação, que é uma filha fiel à Igreja. E tenha sempre presente a defesa dos povos indígenas. Assediado por tanta gente que o rodeava, o Papa continuou atento. Completei: — Como frade dominicano, ponho em suas mãos a reabilitação de Giordano Bruno e Mestre Eckhart. …………………………………………………………………………………… Francisco reagiu à minha solicitação: — Ore por isso. Ao final, me dirigi a ele, primeiro em latim, e logo traduzi para o espanhol: — Extra pauperes nulla salus. Fora dos pobres não há salvação. Francisco sorriu: — Estou de acordo — disse ao se afastar. O artigo de Frei Betto pode ser lido em sua íntegra e contexto neste endereço: http://oglobo.globo.com/sociedade/encontro-com-francisco-12147699. O porta-voz da Santa Sé, Frederico Lombardi, apressou-se em esclarecer a informação fora do contexto exato: Ao contrário do publicado ontem, 10 de abril, por alguns meios de comunicação, não houve audiência em Santa Marta do Papa Francisco com Frei Betto mas, como de costume, no final da audiência de quarta-feira com os fiéis, apenas um breve encontro no adro da Praça de São Pedro, durante o qual o Pontífice se limitou a escutá-lo e saudá-lo. No Globo de hoje, Frei Betto reincide em apresentar ideias ou fatos fora de contexto. Desta vez, sua descontextualização está a serviço da defesa do uso da imagem do Cristo Redentor no filme de José Padilha, contra o parecer da Arquidiocese do Rio. Chega a citar em defesa de suas opiniões o papa Bento XVI!, de quem fora crítico pertinaz e a quem chamara de “cabo eleitoral de forças conservadoras”. O mais grave, contudo, é a descontextualização dos Salmos, oração milenar cotidiana da tradição litúrgica judaica e cristã. Referindo-se a um gênero de salmo de lamento, atribui à cena polêmica do filme citado, a mesma atitude orante do salmista. É verdade, que os salmos também são por vezes orações de revolta e, por isso mesmo, de consolo. Contudo, o lamento, neste caso, insere-se em contexto orante. Trata-se duma oração de bênção, uma “berakhah”, como se diz em hebraico. Podemos abençoar até nossas revoltas, nossas dores, nossos pecados. O mesmo que fez Bento XVI em Auschwitz, ao adaptar a passagem do Salmo 22, 2, citada por Jesus, conforme o Evangelho de Marcos (15, 34): “Por que, Senhor, permaneceste em silêncio?”. Tudo isto está no contexto da oração. Ou melhor, a vida é transformada em oração, é consagrada a Deus, a cada momento, a cada atividade. Visa-se a uma consagração integral e, por isso mesmo, o salmo inclui esses momentos de crise que fazem parte do cotidiano de cada um de nós. Não parece que seja este o contexto do filme. Há, entretanto, uma boa notícia no artigo de Frei Betto, chamado de “O Salmo de Wagner Moura”. Fica-se sabendo, com alegria, que o ator e outras personalidades do meio artístico e jornalístico participam de encontros de oração e meditação em companhia de Frei Betto. Infelizmente, porém, muitos artistas e jornalistas têm, nestas duas semanas, criticado erroneamente a atitude da Arquidiocese, com acusações preconceituosas e incorretas com a fé cristã, como foi o caso de Arnaldo Bloch e de Cora Rónai, na semana passada, além dos próprios envolvidos no filme. Frei Betto faz-lhes coro. A esta altura, não sabemos mais se o artigo de Frei Betto é “fogo amigo”. Betto confessa-se homem de Igreja, mas não é da oração dos salmos cantados no coro dos dominicanos há oito séculos de que Frei Betto participa, mas do coro dos que têm voz na mídia, do coro das frases e ideias que agradam e fazem sucesso, dos clichês, numa mídia que cotidianamente denigre a Igreja. Somente O Globo já publicou, em duas semanas, quatro ou cinco matérias integrais contra a Arquidiocese! Não há artigos em sua defesa, a não ser pequenas participações, em parte dessas matérias, de um ou outro teólogo. É um coro de massificação, que já ouvimos tantas vezes, ao qual tenta se afinar Frei Betto, sem sequer nos fazer lembrar das melodias de seu Convento.

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Um “no momento” perturbador

Robson de Oliveira Silva Membro do Centro Dom Vital A literatura registra alguns exemplos de locuções adverbiais perturbadoras. Na escatologia de C. S. Lewis, “A última batalha”, com pragmatismo político digno de um Richard Rorty, Ruivo e o Rishda Tarcaã combinam a utilidade temporária de Manhoso. Assim “no momento” em que as circunstâncias mudarem, o macaco será o primeiro a ser sacrificado. Em “Rei Lear”, o ardiloso Edmundo revela a decisão de manter-se unido à Regan e Goneril “por enquanto (now then)”. A locução adverbial traça o perfil psicológico do personagem de Shakespeare, que usa as filhas do rei enquanto são úteis a seus interesses. Quando as circunstâncias mudarem, igualmente mudarão os sentimentos relativos às princesas. A tragédia grega de Eurípedes também nos ensina algo: até o leãozinho é grato pela generosa mão que o alimenta, mas apenas “no momento” do benefício. Quando crescer, o filhote de leão agirá como lhe ordena a natureza. Assim, a locução adverbial serve como alerta para os leitores: as coisas em breve podem mudar. A referência diz respeito à Clitemnestra, esposa dedicada, que não tardará em trazer infortúnio ao rei Agamenon e sua concubina. O texto “O veto do Cristo é golpe de estado”, de 12/07 em O Globo, não merece atenção pela sua salada acusatória. A despeito da megalomania do cronista, que quer transformar o cumprimento de um inciso da Constituição Federal em uma crise republicana, o texto não é diferente de outras peças jornalísticas dos periódicos nacionais que são, há algum tempo, míopes, simplistas e – nesse caso particular – clichês históricos sobre religião, demonstrando quanto de paixão e subjetividade está tomado seu autor. Termos como “Santo Ofício”, “Bula” e “Absolutismo” só testemunham seu envolvimento visceral, minando a imparcialidade necessária à empresa jornalística. Outro ponto, porém, prendeu minha atenção. Em certa parte do discurso, o texto diz que o direito pelo uso da imagem do Cristo Redentor é da Igreja Católica “no momento”. Confesso que a construção da frase inquietou-me. O que quereria dizer com ela seu autor? Será que pretendia propor que o Estado limitasse a ação civil da Igreja Católica? Será que ele acha saudável para um estado democrático que haja limites na ação civil das confissões religiosas? Ou que o direito das confissões religiosas de constituírem-se sujeitos sociais e de omitirem opiniões é um benefício concedido por generosidade e que pode ser retirado à sua revelia? Bem, não sei o que ele quis dizer, mas sei o que ele disse. No texto ele diz que quando a Igreja escolhe tomar decisões como essas, isto é, quando não cede a pressões da opinião pública, ela põe em risco a democracia e que, portanto, a democracia (que nesse caso se confunde com a opinião do articulista) deveria impor sua vontade sobre a Igreja, limitando – não se sabe como! – seus direitos sobre o Cristo Redentor. Para essa batalha o artigo convoca a OAB, o Ministério Público, “o Judiciário como um todo” e todos os homens que se submetem à sua opinião. A questão é: por que parar por aí? Por que não impor limites também, sei lá, aos jornais paroquiais de todo o Rio de Janeiro que ,”no momento”, desafiam a democracia (claro, só os jornais daqueles padres que não se alinham ao juízo do articulista)? Afinal, eles também poderiam pôr em risco a democracia. E há também o jornal da Arquidiocese. E as rádios paroquiais. E a Rádio Catedral. Levando a sério a locução adverbial do articulista, é só uma questão de tempo até a sociedade civil impor limites às pretensões desses religiosos autoritários, que cometem o crime de dar opinião na vida pública. Entretanto, parece que o zelo por defender o Rio e o Brasil do autoritarismo só se levanta quando a acusada é a Igreja Católica. Pois veja: em maio de 2014, quando o parlamentar Jorge Bittar defendeu abertamente o marco civil para as comunicações, o articulista não proferiu palavra em seu espaço no jornal; também em maio, quando o encontro de blogueiros, organizado pelo partido da situação, defendeu escancaradamente o controle da imprensa como meta governamental, novamente o silêncio tomou conta do articulista. Os arquivos do jornal estão lá para demonstrar que o articulista não emitiu qualquer rusga de crítica à tentativa do governo da situação de impor limites à imprensa. Ele não vê nessas atitudes risco de golpe institucional contra a República, mas acredita que a permissão ou recusa de uso de uma imagem em um filme atenta contra a democracia. Sou só eu ou temos aqui o que se pode chamar de zelo democrático “dirigido”? Na perspectiva de muitos cidadãos fluminenses, o episódio não trata de censura. O leitor não se deixe enganar: não se trata de proibir a exibição de um filme. Nem de liberdade de expressão cultural. Não se trata do uso de uma imagem protegida por lei, nem de propaganda gratuita de um produto. Trata-se de algo muito maior! Algo que o autor não conhece e que, infelizmente, não parece respeitar. Trata-se do sentimento religioso de milhões de pessoas, pessoas que pagam seus impostos, pessoas que não querem ver o símbolo de sua fé servindo de achincalhe para um grupo de artistas. Essas pessoas têm ou não o direito de proteger sua fé e os símbolos que lhes são caros?  

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Jornalismo Niilista: Os Abantesmas Teológicos de Arnaldo Bloch

Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira Presidente do Centro Dom Vital   Retrocedemos. De terça-feira a hoje, retrocedemos. No Globo de hoje, sábado, Arnaldo Bloch em sua coluna assusta-se com fantasmas, abantesmas teológicos: Animismo, Obscurantismo, Sadismo, Fundamentalismo, Golpismo poderiam ser os seus nomes. São, contudo, figuras conhecidas da crítica superficial e de propaganda enganosa, sobretudo contra a religião. Mas, repito: retrogradamos, para nos mantermos no campo semântico acusatório da Cora Rónai de terça-feira. Se esta jornalista praticava naquela ocasião um ‘jornalismo negativo’, Arnaldo Bloch degrada-se ao niilismo. E isto basicamente porque, em seu enfadonho artigo, de título alucinatório, “Veto do Cristo é Golpe de Estado”, o autor solapa seus próprios princípios. Defende o direito de liberdade de expressão, solapando o Direito e a Justiça. O Direito que garante a liberdade de expressão garante também os direitos da Arquidiocese sobre a imagem do Cristo Redentor. Esta é a questão em pauta. Uma coisa é questionar o direito da Arquidiocese sobre a estátua, como insinua o próprio autor: “O direito, no momento, concedido à Igreja Católica sobre a estátua…” (grifo nosso). Outra é contestar o direito de preservação do culto e do que a ele se relaciona, que repudia “ultraje a ato ou objeto de culto religioso”(Art. 208 do código penal). A confusão entre estes dois níveis do direito, por se ter repetido durante a semana toda, parece então proposital. Até mesmo o presidente da Comissão de Direitos Autorais da OAB do Rio, Dr. Fábio Cesnik, que discorda do parecer da Arquidiocese, faz esta distinção em outra página da mesma edição de hoje do Globo. Mas não é só isso. Há expressões claramente preconceituosas no texto de Bloch: “cruzada censória”, “bula”, “bulas medievais” (o adjetivo não podia faltar!) “fundamentalismo”, “narrativas milagreiras”. São expressões anacrônicas do imaginário de pessoas semicultas que, por isso mesmo, surtem os efeitos esperados pelo jornalismo niilista. Niilismo, entre outras coisas, é a negação da fundamentação da realidade. Por que, todos os dias, temos de ler no Globo e em outros jornais de grande circulação, os melhores do país, essa enxurrada de asneiras, de ignorância temática? O niilismo anulou o próprio jornalismo? Também os leitores informados devem estar cansados dessa propaganda. Vamos aos “conhecimentos teológicos” de Bloch: “…uma vez que o catolicismo, que tem no animismo seu maior poder, (…) trabalha suas imagens de pedra, gesso, madeira, ouro, como se estivessem carregadas da substância divina”. Que é animismo? É aquela crença que defende que todos os seres, os corpos inclusive, têm vida, alma, enfim, são animados. Pode pertencer também a uma corrente filosófica, por exemplo, quando uma filosofia defende que o mundo é vivo, no sentido em que há uma “alma do mundo”. Ora, nada mais impróprio em relação ao Cristianismo. Para o Cristianismo, só têm animação os viventes, a saber, os vegetais, os animais e o homem, sendo que este último é animado pelo espírito. Símbolos simbolizam, não há animismo nisto! Se a lei protege de ultraje os símbolos nacionais (bandeira, hino etc.), por que não protegeria símbolos religiosos? Estado laico não significa Estado indiferente à proteção das crenças e valores de seus cidadãos. Ofensas morais à representação de uma pessoa ou de uma instituição, não são ofensas morais a esta pessoa ou instituição? Xingar a fotografia de alguém, dirigindo-se à pessoa representada, não constitui xingamento? Escapa a Arnaldo Bloch a mais ululante tautologia: a representação representa algo. A doutrina cristã, especialmente a Igreja Católica, também é contrária a qualquer fundamentalismo religioso porque, no fundo, é o fundamentalismo uma variante da descrença. A fé cristã procura mostrar seus argumentos racionais até onde isso é possível. No caso em pauta, não há dificuldade de ver que o direito de preservação da imagem de uma estátua, que não é viva, fundamenta-se na racionalidade do Direito que garante a liberdade religiosa que, para tal, preserva os símbolos e objetos de culto das religiões. É fácil reconhecer que o Cristo Redentor é também um símbolo nacional, então o desafio seria como conjugar um direito já assegurado constitucionalmente com os direitos de uso da imagem por quem não crê ou que, além de crer, queira usá-la em outras funções que não a de expressão de fé. Este é um verdadeiro desafio que o jornalista poderia abordar em sua matéria, pondo, assim, o problema no patamar dos argumentos e não da mera propaganda. Parece que o texto da cena que foi revelado pelos produtores não é integral, contudo o que lemos não é facilmente aceitável. E não se trata somente de palavras, mas também de gestos, pois parece que a personagem na polêmica cena despede-se com um gesto obsceno à imagem do Cristo Redentor. Enfim, a ausência de fundamentos e de argumentos numa questão de direitos não pode ser defendida por ninguém em nome da liberdade, menos ainda por Bloch, que é escritor, muito embora a acusação de hibridismo que ele atribui à Igreja Católica esteja presente em seu próprio artigo, tornando-o ambíguo e sem fundamento do começo ao fim. Quando trata da “Liberdade com “L” maiúsculo”, ninguém pode saber ao certo o que é isso. Sobra propaganda, faltam argumentos.

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Repensando o Modernismo – Alceu Amoroso Lima e as Contradições Modernistas

Leandro Garcia Rodrigues[1] Diretor do Centro Dom Vital Quando pensamos nos “modernismos” que o Brasil produziu, uma certeza solta à nossa frente: ainda temos muito que pesquisar, muita poeira cultural ainda se esconde pelos escombros do nosso passado. Certamente, o projeto heróico de São Paulo não foi a única versão de Modernismo que o Brasil testemunhou nas primeiras décadas do século XX, pesquisas têm mostrado o quanto a modernidade brasileira foi fragmentada e diversificada em forma e conteúdo. Um problema se torna gritante: antigos cânones e certezas vão perdendo o caráter engessado que os caracterizava, dando margem para outras possibilidades e semânticas às vezes intrigantes. É o caso da participação/contribuição de Alceu Amoroso Lima, que viveu, interagiu e produziu sua gigantesca obra ao longo deste período que chamamos de Modernismo. Amoroso Lima circulou pelos principais espaços de produção da mentalidade modernista, fazendo contato com as mais diferentes correntes que conviviam nem sempre de forma harmoniosa. Desta forma, podemos dizer que ele ajudou a “pensar” a modernidade brasileira e acompanhou as suas múltiplas manifestações e transformações. São esses aspectos que vamos explorar adiante. Um fato importante de ser lembrado é que os primeiros anos no Modernismo brasileiro se processaram durante a década de 20, e foi justamente neste momento que Alceu passava pela sua ebulição/calefação espiritual, que o diga a sua vertiginosa correspondência de seis anos com Jackson de Figueiredo, quando ao término da mesma se solidificou o seu retorno definitivo à Igreja. Tudo contribuía para que Alceu tivesse uma profunda aversão às novidades vanguardistas, principalmente a sua formação intelectual e o tipo de convívio cultural que tinha. A este respeito, Wilson Martins deu a dica do que “salvou” Alceu para o Modernismo: O que o salvou para a literatura e para a posteridade foi justamente a espécie de disponibilidade espiritual em que então se encontrava e que lhe permitiu encarar com simpatia aquela revolução de jovens, distinguindo lucidamente o que nela havia de necessário e, apesar das aparências muitas vezes funambulescas, de sério e até de severo. (apud Coutinho, 1997, p.592) Superando as expectativas negativas, a conversão de Alceu não significou o seu enclausuramento intelectual. O seu “Adeus à Disponibilidade” o fazia disponível às diferentes ideologias e estéticas, porém conservando os frutos que o trabalho da conversão fizera produzir. Foi um adeus ao materialismo e à ausência de Deus, não às idéias. Por isso que teve uma participação ativa nos debates que ajudaram a dar forma ao movimento modernista. Com isso, compreendemos as muitas lembranças desta fase heróica do Modernismo. E nada melhor que um livro de memórias para que tais impressões viessem à tona. Quando foi publicado o seu Memórias Improvisadas, em 1973, no auge das comemorações dos seus oitenta anos, Alceu fez um excelente balanço histórico do Modernismo com a autoridade de quem vira tudo acontecer e, o mais importante, com uma larga distância no tempo, pelo menos uns cinqüenta anos em relação aos momentos por ele aludidos, o que forneceu maior flexibilidade analítica e uma privilegiada visão de conjunto. À pedido do entrevistador, Medeiros Lima, que fizesse um balanço do movimento, Alceu assim começou: O modernismo em princípio foi a negação do marasmo, do academicismo, da subserviência à literatura portuguesa e a certo e vago cosmopolitismo. […] Como manifestações positivas são características: 1) a afirmação da liberdade em arte, o que fez do modernismo uma espécie de neo-romantismo; 2) o reconhecimento do direito à pesquisa estética, de um estilo novo, pela ruptura com a arte poética e a vernaculidade gramatical imposta; 3) a afirmação de temas e inspirações nacionais; 4) o reflexo de movimentos análogos que se processavam no estrangeiro e que a guerra trouxe à tona, como o futurismo, o cubismo e o supra-realismo; 5) a afirmação de que o tempo é o critério de valores; 6) a procura da originalidade, o afastamento dos modelos. (Lima, 1973, p.71) Em princípio, Alceu não disse nada diferente do que tradicionalmente se relega ao movimento modernista, principalmente numa perspectiva didática. Foram as bandeiras apresentadas e defendidas por aqueles que militaram na tal transformação da nossa mentalidade literária. Contudo, um aspecto é necessário ressaltar: “a afirmação de que o tempo é o critério de valores”. De fato, a distância diacrônica entre a fase dos acontecimentos e o momento das lembranças fez com que Alceu e outros críticos apresentassem interessantes análises, especialmente no que diz respeito às diferentes participações de intelectuais neste período de construção do ideário moderno em nossas letras. A este respeito, afirmou Afrânio Coutinho: O Modernismo, de seu lado, beneficiou-se do apoio de dois nomes estranhos aos seus quadros e, por isso mesmo, tanto mais valiosos: o de Tristão de Athayde que, iniciando a sua crítica num grande jornal carioca, em 1919, já usufruía, em 1922, de certo prestígio, e o de Graça Aranha, que representava uma cabeça de ponte na Academia – precisamente o único lugar em que os primeiros modernistas nenhuma cabeça desejavam estabelecer. Mas, a presença de alguns “respeitáveis” ao seu lado dava-lhes uma sorte de “aval” de que, social e subconscientemente, tanto necessitavam. Junte-se, então, mais este paradoxo à história do Movimento: revolução espiritual antiacadêmica por excelência, não repudiou a lisonja representada pela adesão de três eminentes espíritos acadêmicos e conservadores: Graça Aranha, Paulo Prado e René Thiollier. (Coutinho, 1997, p.592) Certamente, este foi a primeira e principal contradição do movimento modernista brasileiro: a vanguarda e a tradição caminhando lado a lado, imbricando-se mutuamente, ora convergindo, ora divergindo. A própria organização da Semana de Arte Moderna foi prova disso. Primeiramente o espaço escolhido, o Teatro Municipal de São Paulo, que naquele momento era um dos principais monumentos da arquitetura neoclássica da capital paulista. Imaginemos o que deve ter sido a exposição organizada no saguão de entrada – as “estranhas” pinturas cubistas de Anita Malfatti e Di Cavalcante e as esculturas esquisitas de Brecheret – todas sendo devidamente ladeadas pelas imponentes colunas gregas do prédio, isto sem dizer da imponente rotunda de tendência renascentista bem ao alto. E o que dizer de Paulo Prado,

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Associação de leigos católicos, dedicada, desde 1922, à difusão da fé e à evangelização da cultura no Brasil: revista A Ordem, palestras, cursos, etc.